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Chamava-se Maria Batista.
Tinha quase trinta anos. Não tinha parente influente, mas era talentosa.
Tão logo
concluiu o seu primeiro romance, começou a peregrinação pelas editoras, tentando
conseguir que alguém lesse a sua obra e a indicasse para publicação. Era inútil.
Algumas vezes a desanimavam por causa da quantidade de páginas escritas. Outras
vezes, sugeriam que arranjasse um pseudônimo, ou esperasse ficar mais velha
para adquirir mais experiências, e assim por diante. O fato é que, em nenhum
lugar por onde passou, alguém se dispôs a ler uma página sequer do que ela
havia escrito.
Por fim,
resolveu insistir numa editora indicada por um colega que tinha conseguido
publicar, por ela, vários livros de poesias. Para ele, a idade não pareceu
problema algum, tinha dezenove anos o rapazinho. O seu estilo era, sabe aquele
tipo de desabafos bem particulares, que não interessa ao leitor maduro? Pois
eram assim as suas “poesias”. Mas como tinha um nome bonito, um sobrenome de
gente influente, bastava querer, e os seus trabalhos eram publicados, sem
demora. Tão ingênuo era que garantiu à colega que o pessoal da editora era
superbacana; precisava tão somente se apresentar lá com o trabalho
datilografado, e não enfrentaria dificuldade alguma. Bom, lá se foi Maria
tentar mais uma vez.
Não
conseguiu falar com o “chefão”, mas falou com alguém que também tinha poder
para decidir. O final da conversa foi mais ou menos assim; digo mais ou menos,
porque quando fico indignada com alguma coisa, ao passá-la adiante, costumo
exagerar. As pessoas gostam de ouvir exageros, principalmente se os
acontecimentos são trágicos ou cômicos.
– ...Mas minha filha, veja bem... não!... Pense comigo: Maria
Batista? Já não cai bem para uma escritora se chamar Maria e ainda mais o
sobrenome Batista. Vá pra casa, invente um pseudônimo e depois volte pra gente
conversar.
Saindo do
gabinete desse, Maria resolveu tentar um outro também responsável pelo setor de
publicação. Como a conversa foi quase a mesma, basta registrar novamente apenas
o finalzinho:
– É... a
capa tá... bonitinha – colocou o livro diante dos olhos girando-o até que
ficasse de cabeça para baixo. – Foi você mesma quem desenhou? Muito criativa...
É, parece talentosa mas... Veja bem, as cores, o visual, o título da obra, tá
tudo bem arrumadinho, mas o que está tirando a harmonia aqui é o nome da
autora. Que tal inventar um sobrenome estrangeiro?...
Entregou o
livro a Maria, levantou-se, bateu-lhe levemente no ombro, a fim de que a moça
entendesse que o assunto estava encerrado.
– Olhe,
vou lhe dar um conselho: amadureça mais a sua ideia. Você ainda é muito jovem.
Um escritor pra ser bom mesmo tem que ter experiências. Quanto mais velho o
escritor for, melhor, entende? Você só tem vinte e poucos anos, ainda é uma criança...
Essa,
Maria não suportou. Pôs-se de pé bem perto do bigodão do homem e falou já sem
calma:
– Afinal,
o senhor me diga quantos fios de cabelos brancos um escritor precisa pra que
resolvam lhe dar crédito? Gostaria de saber, só assim sairei daqui direto para
um cabeleireiro para mudar o visual.
Não deu
outra, o homem ficou todo ofendido com o atrevimento de Maria e jogou-lhe na
cara que, desde o principio, percebera que ela não tinha talento algum, era tão
somente uma adolescente sem experiência de vida.
Sete meses
depois, Maria estava de volta à mesma editora. Usava uns óculos à lá John
Lennon e descoloriu os cabelos, deixando-os brancos como a lã das ovelhas. Por
falta de idade, não iria mais deixar de publicar o seu romance.
Perceba
como a conversa foi diferente, desta vez:
– Bom,
vovó. É que o povo gosta mesmo é de novela, de filme. Hoje em dia ninguém lê
mais, não. Por que a senhora também, em vez de ficar perdendo tempo com
bobagens, não vai fazer outra coisa mais útil?
A falsa velhinha, muito bem
preparada e eloquente, pôs-se a argumentar sobre a importância dos livros e da
leitura para a vida das pessoas. Dava para perceber que a velha era bem
informada, mas o homem nem atentou para isso, queria mesmo era deixar de ser importunado.
– Tá bem vovó, vamos fazer o seguinte: tente resumir esse
romance, tá muito volumoso, quantas páginas ele tem? – deu uma olhadela na
última página. – 215! Pois é, ninguém lê um livro de quase trezentas páginas...
Basta umas 100, por aí.
No momento
em que Maria
tentou argumentar que, se resumisse a sua obra, poderia até tirar-lhe o
sentido, o homem disse que não tinha problema nenhum, as pessoas nem iriam
notar. O importante era ser fininho para encorajar as pessoas a ler. E ainda
disse mais que não precisava ter pressa, ela podia resumi-lo bem devagar, pois
estava já bem velha e, se deixasse para publicá-lo depois que morresse, seria
até melhor, porque um escritor fica mais valorizado depois que morre.
Maria
viveu com tanta convicção o personagem da velhinha que quase enfartou de tanta
contrariedade que teve. Ora, quem já viu tamanho descaso?
Dois anos
se passaram, até que decidiu retornar a essa mesma editora para fazer uma outra
tentativa. Para isso, precisou da ajuda de uma amiga que também era boa em representar. Pintou
os cabelos de louro extravagante, pôs nos olhos um par de lentes azuis e,
assim, se apresentaram na recepção. Desta vez, Maria fazia-se passar por uma
estrangeira que viera morar no Brasil.
Rapidamente
as portas se abriram. Ofereceram-lhes chá, café e água mineral. Os funcionários
que transitavam pelos corredores, gentilmente ofereciam os seus préstimos. Em
pouco tempo, Maria tornou-se o centro das atenções e, assim, foi enviada diretamente
ao editor-chefe.
A moça estava usando o nome
de Mary Nobody e levava consigo, além do romance, um conto escrito em inglês,
com a devida tradução para o português. O conteúdo do conto não era importante
naquele momento, bastava apenas que acreditassem que ela era estrangeira. Não
podia cruzar os braços, tinha que tentar de todas as maneiras. Afinal, sabe-se
que alguns supervalorizam o que vem de fora ao passo que deveriam apostar um
pouco mais no talento nacional.
Meia hora depois, a metade dos funcionários da editora já tinha
lido o conto da “estrangeira”. E como a “tradutora” garantiu que o romance era
bem melhor, mesmo sem o terem lido, já passavam adiante a informação de que a
desconhecida era uma excelente romancista.
Para dar mais realismo à
façanha, a amiga anunciou que Mary não entendia nada do nosso português. Assim,
sempre que as pessoas falavam com a Maria, ela servia de intérprete. Mais
divertido não poderia ser. Se não conseguisse publicar o seu livro desta vez,
pelo menos teria material para escrever um outro.
No fim da tarde, depois de
terem satisfeito a muitos curiosos que queriam treinar o seu inglês com a
escritora, estavam de saída, com a certeza de que o romance seria publicado o
mais rápido possível. Certa de que o editor-chefe não entendia nada de inglês,
Maria sentiu-se muito à vontade para diverti-se à custa dele. Na hora de despedir-se,
disse-lhe, sorridente, enquanto apertavam as mãos:
– I have been here many times you fool and you didn’t publish my novel.
Now I have returned and you have solved my problem because you have thought I
am foreigner, but the truth is that I am a Brazilian just like you, with a
great difference: I am smart and you are just a donkey in pants.
Como a amiga não podia
dar-lhe uma tradução fiel, improvisou as seguintes palavras.
– Ela diz
que gostou muito do povo brasileiro... que aqui tem muita gente de talento e
que vocês deveriam dar mais valor aos escritores nacionais.
– Eu não
entendo muito de inglês, não, mas se não me engano, ela falou o nome calças...
– Ah! É
verdade... ela disse que gostou muito de suas calças.
Foi aí que
o chefe, envaidecido, resolveu ensaiar o agradecimento na língua da visitante.
– Not at all, you donkey in pants.
A
tradutora, esforçando-se para não deixar escapar uma gargalhada, comentou: “Ela
realmente gostou de suas calças”.
Três meses depois, a
tiragem estava pronta: dez mil exemplares, sem que Maria tivesse gastado um
centavo de seu bolso; quer dizer, gastar, ela gastou, com as lentes e a pintura
do cabelo, e coisas desse tipo.
Na hora de
despachar os livros, o editor-chefe veio pessoalmente fazer-lhe a entrega.
Estranhou quando viu o nome Maria Batista estampado na capa do romance, ao
invés de Mary Nobody. A explicação dada pela tradutora foi a seguinte: Mary
quis fazer uma homenagem ao Brasil adotando um pseudônimo bem brasileirinho.
A partir de então, Maria Batista passou a ser um ótimo nome para
uma escritora. Por fim, o chefe despediu-se da senhorita Nobody com beijinhos
e, querendo agradá-la de todas as maneiras, entregou-lhe um “presentinho” já
cheio de saudade. E imagina o que havia dentro do embrulho que Maria recebeu?
Não imagina?! Pois tão logo nossa heroína teve o presente em suas mãos,
deduziu, de imediato, do que se tratava: eram as calças que o homem usava por
ocasião da primeira entrevista e que, segundo a tradutora, ela havia apreciado
por demais.
É... foi
assim que a carioca Maria Batista iniciou sua carreira literária. Hoje ela é
nacionalmente conhecida por seu talento e por sua astúcia também.
* * *