Todos têm ciência de que velório é
um ambiente sério. Aliás, seriíssimo. A família, tremendamente abalada, fica
assim como quem sonha. É de cortar o coração quando os vemos contemplando,
incrédulos, o corpo inerte de um ente querido. Até quem não é da família se
emociona, e chora. Alguns até exageram na hora de mostrar compaixão. Sim,
porque, às vezes, nem conhecem o morto; mesmo assim, choram copiosamente e, às
vezes, até passam mal.
Bartolo
tinha sessenta anos quando morreu. Possuía um coração generoso. Adorava estar
entre os amigos, divertindo-se, contando e ouvindo piadas. Rir é um excelente remédio,
dizia ele, para qualquer tipo de doença, e em especial para evitar a depressão.
Era repentista dos bons. Gostava de festas e evitava se apresentar em enterros. Dizem
que era porque temia não saber se comportar. Era do tipo que falava alto e
gargalhava à toa.
Não o
conheci pessoalmente, porém sabia muito sobre ele, porque Bárbara, minha amiga,
tratava de me contar tudo que o velhote engraçado aprontava. Dizia-me que o tal
Bartolo era incrível. Fazia caras engraçadíssimas e dava risadas extravagantes,
daquelas que ficam ecoando nos ouvidos por um longo tempo. As pessoas riam só
de ouvir-lhe as gargalhadas.
Alguns o
achavam muito parecido com o personagem Frankenstein, por causa do rosto
completamente marcado pelas cicatrizes que adquiriu num acidente do qual foi
vítima quando era ainda jovem. Ele, com muito senso de humor, tirava proveito
de sua feiura: ser parecido com Frankenstein era, para ele, uma grande honra.
Desejei
muito conhecê-lo. Eu e Bárbara fazíamos planos para irmos juntas passar um
final de semana na casa de praia de Bartolo. Ela já tinha ido várias vezes,
porém, para mim, as oportunidades foram passando, até que, por fim, minha amiga
trouxe-me a triste notícia de que ele havia falecido.
Era uma
segunda-feira. Tínhamos combinado de nos encontrar na biblioteca às sete da
noite. Estava em nosso cantinho favorito, que era em uma mesa que ficava junto
da janela de vidro, de onde podíamos contemplar algumas árvores lá fora. Essa
visão dava-nos uma sensação de paz e tranquilidade.
Quando
cheguei ao nosso cantinho, percebi que já estava ocupado por um devorador de
livros. Pedi licença e sentei-me. Pensei comigo mesma: “Se o ‘intelectual’ se
sentir incomodado, então, que se retire.”
Algum
tempo depois, Bárbara surge, vindo em minha direção. Sentou-se já se segurando
para não rir. Tinha que se comportar decentemente, afinal, além de estarmos
numa biblioteca, tínhamos companhia em nossa mesinha.
– Quem é
esse ocludão? – perguntou-me
baixinho, referindo-se ao rapaz que lia sentado do outro lado da mesa. Era
míope, coitado! Por isso usava uns óculos meio grandes de lentes bem grossas.
– Não sei.
Já estava aí quando cheguei.
– Tenho
uma pra te contar... – continuou falando baixinho.
– Então
conta logo...
– Quando a
gente sair daqui eu conto... Aqui não dá, senão vou rir... Quase morri de rir
ontem à noite... Lembra de Bartolo?
– Bartolo?
– Frank, o
repentista...
– Sim.
– Morreu!
– desatou a rir, e eu também. O cara que dividia a mesa conosco levantou o
livro de maneira que não pudéssemos ver seu rosto.
– Morreu
de quê?
– Foi um
enfarto fulminante... – não conseguia estancar o riso. – Depois eu conto –
tapou a boca com uma das mãos.
Olhei para
o rapaz à nossa frente. Ele ainda escondia o rosto atrás do livrão que tentava
ler. Voltei-me para Bárbara, que estava vermelha de tanto rir. Achei que se
tratava de mais uma de suas gracinhas, e estava ansiosa para saber o que tinha
para me contar.
– Vai.
Conta logo essa sua piadinha.
– Não é
piada não... Quando lhe contar, você vai entender por que estou rindo.
– Então
conta logo... – sussurrei.
– Aqui
não, senão vai atrapalhar o rapaz que está estudando... – disse elevando a voz
com o propósito de chamar a atenção do “ocludão".
– Por mim,
tudo bem – apressou-se em falar o estudante – estou somente preenchendo o
tempo, não tenho mais aula... Moro no interior e meu ônibus só sai às dez e
vinte.
– Então
tá. Vou tentar falar baixinho... Que curso você faz?
– Ciência
da Computação. E vocês?
–
Direito... Dá pra acreditar? – nem esperou resposta, voltou-se em minha direção
e começou a falar.
Rapidamente
esqueceu-se de que prometera falar baixo e prosseguiu contando-me detalhadamente
tudo que viu e ouviu durante o velório de Bartolo.
Logo que
recebeu a notícia, ficou tremendamente abalada. Queria chorar, mas não
conseguia. O pranto estava preso, e isso lhe fazia um mal terrível.
Eram oito
horas da noite do domingo quando lhe disseram que o corpo havia chegado. Saiu
de casa levando a sobrinha de quatorze anos em sua companhia. Precisava ver
para poder crer que Bartolo realmente havia morrido. Era inacreditável, afinal,
ele nunca se queixava de doença alguma.
Era
difícil imaginar Bartolo bem comportado, sem fazer nenhuma palhaçada. Ele
jamais ficava quieto. Até dormindo era espalhafatoso: dava pernadas, falava,
roncava alto e fazia outras coisas mais. Aquelas coisas que as mulheres não
comentam para não perder a elegância.
Bárbara
tinha esperanças de que tudo não passava de um terrível engano.
O velório aconteceu na própria residência de Bartolo. Não se sabe ao
certo o motivo, mas dizem que a viúva não permitiu, de modo algum, que levassem
o corpo para ser velado em outro lugar.
O pátio em volta da casa estava cheio de pessoas. Bartolo era muito
querido, tinha muitos amigos. Bárbara acenou para alguns conhecidos e
prosseguiu em direção à entrada da residência. A sala principal, grande e
espaçosa, tornara-se pequena para abrigar a multidão que queria chegar perto do
morto.
Vendo que havia muita gente em volta do esquife, a sobrinha de Bárbara
desistiu de entrar e acomodou-se na varanda. Minha amiga, com paciência
exemplar, conseguiu chegar perto do defunto. Disse que Bartolo nem parecia
estar morto, tampouco dormindo. Parecia um ator representando numa péssima atuação.
Os olhos estavam entreabertos, ao passo que os lábios ameaçavam rir a qualquer
momento.
Repentinamente, surgiram rumores de que o morto poderia estar vivo.
Alguém disse que o viu respirar. Uma senhora comentou baixinho que o sorriso se
abrira um pouco mais. Os familiares recusavam-se a ouvir esse tipo de
comentário, não queriam alimentar falsas esperanças. Certamente gostariam que o
querido Bartolo estivesse vivo, porém, embora o socorro tivesse sido imediato,
os médicos nada puderam fazer por ele. O enfarto fora fulminante. Tinham que se
conformar com aquela fatalidade.
Minha amiga pôs-se a observá-lo com cuidado. Queria conferir, por si
mesma, se aqueles rumores tinham algum fundamento. Sentiu-se na obrigação de
salvar Bartolo, caso ainda houvesse alguma esperança. Vez por outra,
lembrava-se das piadas que ele contava e, então, segurava-se para não dar
risadas. Se olhasse para a cara dele, então, aí era que a vontade de rir aumentava.
Colocava a mão sobre a boca e fingia chorar. Não chorava de verdade, porque não
conseguia. Essa tensão estava provocando um terrível cansaço nas pernas e uma
tremenda dor de cabeça.
Ela corria os olhos pelo recinto, alguns cochichavam. As poucas pessoas
que choravam cobriam o rosto com um lenço ou com as mãos. Isso fazia Bárbara
suspeitar que estavam lembrando das piadas de Bartolo e fingiam chorar para
abafar o riso.
Fazia muito calor por causa da multidão e das velas que queimavam em derredor
do defunto.
Deveriam ser umas dez ou dez e meia quando surgiu na sala uma moça que,
segundo Bárbara, deveria ter uns vinte e quatro anos. Estava elegantemente
vestida de preto e era um tipo bastante atraente. Os olhos denunciavam que já
havia chorado bastante. Todos os olhares se dirigiram para ela. Imaginando ser
alguém da família, as pessoas recuaram, abrindo o caminho para que ela pudesse
se aproximar do esquife. Logo que pôs os olhos sobre o morto, deu um soluço
sentido, e tombou no chão.
Um rapaz que correu para acudi-la derrubou a tampa do caixão, e o
barulho das duas quedas causou um grande rebuliço. Minha amiga Bárbara, para
não ser pisoteada por aqueles que desajeitadamente queriam sair da sala,
esquivou-se na parede e, com isso, pressionou o interruptor, fazendo as luzes
se apagarem.
A confusão foi geral. Do lado de fora alguém gritou:
– O morto ressuscitou! O morto ressuscitou!
Quem estava dentro queria sair por medo do escuro, quem estava do lado
de fora queria entrar para ver Bartolo ressurreto.
Uma voz feminina gritou:
– Rápido, gente, tira ele do caixão para ele não ficar traumatizado...
A sobrinha de Bárbara disse que uma senhora, que não conseguia entrar
por causa dos que se acotovelavam tentando sair, perguntava com voz bastante emocionada:
– Ele está sentado? Ele está sentado? Como é que ele está?
Ao seu lado a filha, puxando-lhe o braço, repetia:
– Foi pilepsia, mainha, foi pilepsia.
Bárbara teve um ataque de riso. Começou a gargalhar bem alto, e isso fez
o povo ficar mais apavorado ainda. Alguém saiu da sala gritando:
– A moça que desmaiou ficou louca e está rindo sem parar.
Um dos presentes, percebendo que somente a sala do velório estava
escura, alcançou o interruptor e acendeu as luzes. Minha amiga, então, teve que
segurar o riso e fingir que chorava.
A confusão continuou. Crianças choravam, pessoas corriam, objetos caíam.
Foi aí que uma juíza aposentada, amiga da família, resolveu tentar pôr
ordem no recinto. Bateu as mãos para chamar a atenção do povo. O tumulto cessou
imediatamente.
– Calma pessoal. Respeitem o morto!
Quando viu que o povo a ouvia com atenção, empolgou-se e fez a maior
pose de político que discursa para seus eleitores. A dentadura frouxa da
velhota ameaçou cair, mesmo assim continuou falando. A dentadura despencou. Com
gesto rápido, a juíza estendeu a mão para agarrá-la, antes que caísse dentro do
caixão de Bartolo.
A crise de riso voltou. Então, Bárbara simulou um tropeção e apagou
novamente as luzes para que as pessoas não percebessem que era ela a dona das
risadas extravagantes. Assim que o
tumulto voltou, acendeu a luz e correu em direção ao banheiro. Riu até que o
riso deu lugar ao pranto. Ficou com a barriga completamente dolorida de tanto
rir.
A juíza conseguiu novamente acalmar a multidão. Se a dentadura tentou
escapar novamente de sua boca, Bárbara não soube dizer, porque estava trancada
no banheiro, chorando após uma tremenda crise de riso.
Um longo tempo depois, saiu do seu esconderijo e seguiu em direção à
cozinha, a fim de beber um pouco de água. Em cada canto da casa havia grupinhos
cochichando, até sobre o que não tinha acontecido.
Todos queriam saber quem era a bela moça que havia desmaiado ao
contemplar o rosto do defunto. Uns aos outros perguntavam, porém nenhum dos
presentes a conhecia. Surgiram muitos palpites acerca de sua identidade.
Todavia, a certeza ninguém jamais terá, visto que, quando tudo se aquietou, a jovem
misteriosa e o rapaz que a socorreu tinham desaparecido.
Por causa dessa tão grande confusão, a família ficou ainda mais fragilizada.
– Quem já se viu bagunçarem um velório dessa maneira? – desabafou a
viúva entre soluços.
De volta à sala onde o morto jazia, deu uma paradinha em frente ao
esquife para dar o último adeus ao amigo. Ele estava tranquilo, com o mesmo
sorriso debochado nos lábios. Parecia o mesmo Bartolo de sempre. Bárbara
esboçou um leve sorriso e acenou discretamente para ele, como se quisesse dizer
“Tchau, Frank, seu velório foi muito divertido”...
Pois é, esta é a história que minha amiga me contou. Depois disso, ela
resolveu levar muito a sério a filosofia de vida defendida por Bartolo.
Acostumou-se a dizer que rir é um excelente remédio, e transforma tudo em
comédia.
Semana passada, estávamos novamente na biblioteca. Enquanto eu terminava
uma pesquisa, ela, muito concentrada, lia um jornal. De repente, encerrou a
leitura e dirigiu-me a palavra com cara de surpresa e pesar:
– Não dá pra acreditar... Estou chocada... João Patrício morreu... que
coisa horrível... seu fusquinha foi completamente esmagado por uma carreta...
– João Patrício?... Quem é esse tal de João Patrício? – indaguei
curiosa.
– Sei lá. Só sei que estou chocada com a morte dele. Por quê? Não posso?
– deixou escapar uma sonora gargalhada.
Pretendia dar-lhe uma bronca, não
consegui. Só de olhar para a cara dela eu desatava a rir.
As pessoas que estavam na biblioteca nos olhavam com ar de reprovação, o
que aumentava ainda mais nossa vontade de rir. Tentando nos comportar,
evitávamos olhar uma para outra. Nesse instante, surge Garibalde, o “ocludão,
aquele que dividiu conosco a mesa no dia em que Bárbara me contou
sobre a morte de Bartolo. Pois é, fizemos amizade com ele e descobrimos, naquela
mesma noite, que ele também é metido a engraçadinho. Aproximou-se de nossa mesa
e, com cara de comediante, perguntou:
– E aí, estão rindo por quê, morreu mais alguém?
Fotografia de Felipe Galdino