Conto de Margarete Solange.
Catarina
tinha um grande sonho: participar de um concurso de beleza e ser a vencedora. E
é claro que seria a vencedora! – pensava e dizia. – Considerava-se belíssima e,
na realidade, o era. A sua formosura era tamanha que chamava a atenção das
pessoas quando passava pelas ruas. Ela sabia que muitos olhares estavam
voltados em sua direção: homens, mulheres, crianças, todos olhavam quando ela
passava faceira, nariz empinado, jogando propositadamente os sedosos cabelos de
um lado para o outro. A finalidade principal desse seu gesto era mesmo chamar a
atenção, provocar inveja nas mulheres que não tinham o privilégio de ter os
cabelos lindos como os seus. Parecia estar constantemente desfilando numa
passarela: tinha um jeito especial de andar... de sorrir... de falar. Uma coisa
assim que não se explica. Os seus passos eram macios, parecendo flutuar em vez
de caminhar; andava na ponta dos pés. Estudava balé (para satisfazer as suas
vaidades, os pais faziam qualquer sacrifício). Cuidava da pele com produtos
especiais, e que pele era a sua! Macia como pétalas de rosas. A sua cor era
linda! Os olhos então, nem se fala...
Catarina era uma mocinha
deslumbrante, mas tinha um defeito físico a respeito do qual ela nunca falava.
Na verdade, ela odiava esse defeito e tentava ocultá-lo o quanto podia. Ninguém
era conhecedor dessa sua particularidade, a não ser a própria família, ou melhor:
o pai, a mãe, os dois irmãos mais velhos e a irmã mais nova, Claudenice.
Bom... continuando onde
parei: o ponto fraco de Catarina era as orelhas, um pouco grandes. Porém,
ninguém, além dessas poucas pessoas, sabia de seu segredo, porque ela tinha o
cuidado de não deixá-las à mostra. Para manter esse segredo, fazia qualquer
coisa e, como era uma mocinha muito enjoada, os seus irmãos a enfrentavam com a
única arma que tinham contra ela, quer dizer, quase única, porque havia também
o nome, que ela odiava: chamava-se Antônia Catarina, por causa de uma promessa
feita por uma comadre de sua mãe, logo que soube que a menina nascera laçada
pelo cordão umbilical (existem os que acreditam na ingênua superstição de que
as meninas que nascem laçadas, se não se chamarem Antônia, não se criam).Assim
sendo, para deixá-la profundamente irritada, bastava chamá-la pelo primeiro
nome ou, por outro lado, fazer menção ao tamanho de suas orelhas. Com essas
duas armas, os irmãos conseguiam dela tudo que quisessem, qualquer favor, por
mais delicado que fosse.
Claudenice,
então, bastava que fosse levemente ofendida para lançar-lhe em rosto um desses
dois “defeitos”, tão indesejados. Mas, na realidade, nenhum
deles podia trair a irmã, revelando o seu segredinho sobre o tamanho de suas orelhas,
uma vez que, quem o fizesse, receberia dos pais o mais duro castigo que
pudessem dar. Para proteger Catarina, faziam qualquer negócio. Eles próprios
encarregaram-se de esconder o defeito da filha durante toda a sua infância e
adolescência. A pobre menina crescera cercada de muitos cuidados, a fim de que
ninguém lhe percebesse tal imperfeição.
– 2 –
Finalmente,
um concurso foi lançado, exatamente quando a garota havia atingindo a idade de
dezoito anos, e nada a impedia de poder inscrever-se. Faltava-lhe o sono à
noite, pensando como seria a novidade. O dia da inscrição chegou. Os seus pais,
pessoalmente, providenciaram-lhe a participação no concurso. Tinham certeza da
vitória.
Aproximava-se
o grande dia. Catarina ensaiava, dia e noite, em frente ao espelho de seu
quarto. Num desses dias, discutiu com a irmã, xingaram uma a outra,
atracaram-se pelos cabelos... A mãe, pondo-se no meio das duas, deu um fim à
confusão, fazendo ameaças de castigar a filha mais nova, caso ela voltasse a
provocar a sua favorita. Quando estavam novamente a sós, Claudenice,
sentindo-se magoada pela injustiça cometida pela mãe, fitou a irmã com um olhar
penetrante, colérico, e disse-lhe:
– Cuidado
hein, Antônia, o concurso vem aí... talvez suas adversárias gostem de saber que
par de orelhões você tem!
Catarina gelou, tornou-se
pálida, perdeu o sono. Enquanto isso, vez por outra se olhava no espelho e,
vendo que a irmã estava adormecida, levantava os longos cabelos e contemplava
as orelhas, que pareciam maiores a cada vez que, mecanicamente, repetia esse
gesto neurótico.
No dia
seguinte, passou a tratar Claudenice com as maiores gentilezas, fazendo-lhe
todas as vontades. Nada poderia estragar o seu grande sonho de ser reconhecida
oficialmente, em toda a cidade, como sendo a moça mais bela. As suas amiguinhas
iriam morrer de inveja. Quando ganhasse o concurso, teria dinheiro suficiente
para fazer uma plástica, um implante de umas orelhas feitas sob medida, ou
qualquer outra coisa que solucionasse o seu problema. Depois disso, então,
poderia acertar as contas com a irmã. Daria o troco por ter tido que lhe fazer
bajulações além da conta.
– 3 –
Numa noite, nem quente nem
fria, deitou-se mais cedo que de costume. Com o olhar fixo no teto do quarto,
sonhava com o grande dia, e dizia para si mesma que tudo estava sob controle,
que nada, nem ninguém iria atrapalhar os seus planos... até que:
–
Antônia... queridinha...– Era Claudenice que entrava pela porta do quarto,
falando com ironia e fitando-a com cara de felicidade. – Adivinha o que tenho
pra te dizer?
Catarina, com voz doce, tentando
ser muito agradável, perguntou à irmã o porquê de tamanha felicidade estampada
no seu rosto. Ela, então, fez-lhe saber a grande nova: todas as candidatas do
concurso iriam usar roupas e penteados iguais... e o modelo escolhido fora os
cabelos presos no alto da cabeça, deixando as orelhas à mostra.
– Essa
não!... não!... não!... – gritava a bela moça, no maior pranto.
Claudenice
ria... ria... ria... e quanto mais a outra se desesperava, mais ela gargalhava,
segurando os próprios cabelos no alto da cabeça e desfilando pelo quarto com
passos leves, imitando o andar da candidata à mais bela garota da cidade.
– Antônia
Catiii... – cantava provocadora – olha as orelhinhas de fora. Catiii!... ninguém
vai conseguir enxergar seus belos olhos cor de mel... – desatava a rir – mas as
suas orelhas...
A moça
chorava, desesperada. Não havia ninguém na casa que pudesse ouvi-la. Todos
tinham saído. Ela se jogava na cama e colocava os travesseiros em volta da
cabeça. No entanto, continuava ouvindo a irmã anunciar o seu nome, e como uma
serpente que cospe longe o seu veneno, lançava no ar uma multidão de palavras
ferinas.
A bela
moça, ainda transtornada, deixou-se conduzir até diante do espelho. A irmã, com
expressão impiedosa no olhar, levantou-lhe os cabelos de fios de seda,
pondo-lhe as orelhas de fora. Catarina, horrorizada, fechou rapidamente os
olhos para não ter que vê-las, porque lhe pareceram enormes, maiores que nunca!
– ANTÔNIA
CATARINA! – anunciou com voz enfática. – Vencedora do concurso das mais belas
orelhas do Brasil! – desatava a rir malvadamente, chegando-se mais para perto
da pobre irmã, que lutava para não ouvir mais nada.
Não suportando a tortura,
correu em direção à cozinha e, num impulso, abriu a gaveta do armário, tirou
uma faca afiada e cortou a orelha direita. Mirou-se no vidro do guarda-louça.
Arrependeu-se. Atirou a faca no chão. Contemplou a própria orelha ensanguentada
no assoalho da cozinha.
– Não!
Não! – gritava descabelando-se, sentindo o sangue quente descer de sua orelha
decepada. – Minha orelha!... – chorava. – Minha orelhinha!...
Nesse
instante, Claudenice apresentou-se no portal que dividia a cozinha da sala de
jantar. Apanhou a faca do chão e a estendeu em direção à irmã, que a fitava
aterrorizada.
– A outra Cati... a outra também é
enorme...
–
Não... a outra não... a outra não... a outra não – repetia, afastando-se da
irmã, protegendo a orelha esquerda com a mão.
Catarina
tentava gritar bem alto para que alguém pudesse ouvi-la, mas não conseguia. A
voz foi perdendo a força e foi sumindo... sumindo... sumindo...
– 4 –
– Cati!
Cati! – chamava-lhe uma voz, que parecia vir de muito longe. – O que foi, Cati?
Despertou
ouvindo a voz terna de Claudenice e, sentindo-lhe a mão quente que repousava
carinhosamente sobre o seu ombro. Catarina abraçou-a, chorando, enquanto
segurava a orelha direita, como sem acreditar que realmente estivesse no seu
devido lugar.
Quando
contou sobre o terrível pesadelo que tivera, a irmã, muito compadecida, prometeu-lhe
que jamais voltaria a zombar de seu defeito, e assegurou-lhe que, na verdade,
não achava que suas orelhas eram tão grandes assim, apenas via nisso uma
maneira de atingi-la nas horas das desavenças (Coisas desse tipo são muito
comuns nas briguinhas entre irmãos).
A partir desse acontecimento, Catarina tornou-se mais humilde e menos
presunçosa. Conseguiu realizar o seu sonho... – Não o sonho de cortar a própria
orelha, claro! – Realizou o grande sonho de ser eleita a garota mais bonita de
sua cidade. Ganhou um bom dinheiro como prêmio, porém não quis fazer plástica.
Desde então passou até a usar penteados que lhe deixassem à vista o pequeno
defeito. Vez por outra, ouvia algum comentário desagradável com relação às suas
orelhas, mas não dava muita importância. Creio que aprendera a lição. Faço minhas
as palavras de minha mãe, que, por sua vez, deve tê-la aprendido com a mãe dela:
“Ruim com elas, pior sem elas!”