“Ser ou não ser”... O quê, por exemplo? Muita coisa. Tudo na
vida é uma questão de escolha. Será? Talvez sim, talvez não. Às vezes a coisa é
tão simples, mas nós optamos por complicá-la, daí cada um tem uma opinião
diferente sobre isso ou aquilo, de modo que a gente nunca tem a certeza de
nada. O que parece simples para uns, é complicado para outros; o que é chato
para uns, é prazeroso para outros. E por aí vai...
A
linguística, por exemplo, geralmente é antipatizada pelos estudantes. É certo
que ela é complicada, mas e daí? As mulheres também são. Por outro lado, os que
se metem a estudar com afinco essa disciplina defendem que ela é sedutora como
uma mulher que nada tem de fácil, mas deseja ardentemente ser compreendida.
Pois é, quando a gente se apaixona, nada é tão complicado.
A questão
é que, ultimamente, estou com uma grande dúvida entre ser legal ou ser chato.
Mas penso que ser chato é a melhor opção. Penso e justifico.
Ouvi
recentemente um garoto de doze anos muito descontente com sua mãe, e sem
rodeios disse-me o quanto ela era chata, exigente, cansativa, etc. Isso porque
não permitiu que ele jantasse sem tomar banho. Bom, se ele já estava o dia
inteirinho sem tomar banho, e até já cheirava bastante mal, acho que não seria
muito lógico ser legal numa situação como essa. Além do mais, na tarde desse
mesmo dia, o mesmo garoto permitiu a entrada de um bando de coleguinhas na
cozinha. Fizeram a maior bagunça, pegando nos copos e nas garrafas de água com
mãos sujas de terra, de rabugem de cachorro, de sei lá mais o quê. Resultado:
levou uma bronca daquelas que começa com: “Meu filho, eu já não falei pra você
que...”.
Os filhos
detestam esse começo da reclamação. Razão pela qual, nem chegam a ouvir o final
e, talvez por isso, tornam sempre a fazer aquilo que os pais dizem para não
fazer. Pois é, todo e qualquer pai ou mãe que começa o sermão em tom
aborrecido, dizendo esse mesmo blá-blá-blá, vai para o clube dos chatos ou dos
cansativos, o que é uma classificação ainda pior.
Por outro
lado, há pais que classificam os filhos adolescentes como sendo a própria
chatice. Todavia, sobre isso eles não concordam, já que, para os adolescentes,
chatos mesmo são os colegas tímidos que não pensam em namorar. Os mesmos,
que na sala se aula, geralmente sentam nas fileiras da frente, prestam atenção
às explicações e sempre acertam as perguntas que os professores fazem.
Existe
ainda aquela engomadinha já adulta que sabe se comportar em palestra e deseja
ouvir tudo que o palestrante está dizendo. Porém, não consegue, visto que um
grupinho muito mal-comportado fica conversando e rindo o tempo inteiro. Isso,
claro, para depois ficar perguntando a um e a outro o que foi dito de
importante. Nesse caso, a incomodada, depois de já ter pedido silêncio uma
dezena de vezes, resolve se irritar e acaba perdendo a elegância.
Ah,
lembrei-me que existe ainda o chato do vizinho, que se aborrece se porventura
está tentando dormir e a garotada resolve fazer uma farra bem debaixo de sua
janela. Diga-se de passagem que nenhum dos garotos é filho dele, pois ele só
tem filhos adultos, casados e morando noutra cidade. Pois é, esse vizinho,
quando resolve enxotar a criançada, é um terror. Então uma mãe bem legal
comenta com o marido:
– Ah,
velho chato! Pra que se aborrecer com os bichinhos? Eles nem estavam fazendo
nada demais. Pode ir, meu filho, faça bem zuada debaixo da janela do
velho. Se ele reclamar, jogue uma pedra na janela e corra pra casa. Deixe o
resto comigo.
É isso aí, essas mães
legais adoram proteger os filhotes. Compram tudo que eles desejam. Claro, se
não comprarem eles se amuam, esperneiam e caem no chão, tendo o maior chilique
do mundo. Isso quando não fazem greve de fome.
Pais
legais são assim: o desejo de um filho é uma ordem. E ai deles se não obedecerem!
Ai dos filhos? Não. Dos pais. Filhos de pais muito legais geralmente não
obedecem. Manipulam, chantageiam com pressões psicológicas, convencem os pais
de que, se não querem nada com os estudos, a culpa é dos professores, que são
uns chatos.
E são
mesmo. Professor não tolera quem bagunça em classe, principalmente durante a
explicação. Ora, se alguém tem nada a ver se ele tem calo nas cordas vocais, se
ganha pouco e as turmas são superlotadas.
E como se
não bastasse a matéria tediosa, ainda vem com a chatice de dizer que o aluno
deveria valorizar o ensino, para garantir um futuro melhor. Quem é que quer
saber de futuro melhor? O momento é agora! Numa boa! A vida é curta e o legal é
aproveitar essa coisa moderna de ficar com alguém sem
compromisso, fugir da aula para teclar com os amigos ou comparar o
celular para ver quem tem o modelo mais bonito.
Essa
modernidade é uma coisa linda: comprar livros, o jovem não pode nem quer, mas
para adquirir um celular, sempre dá um jeitinho. Para isso, não existe
desemprego nem pobreza.
Então, o
chato do professor de português, só porque pegou uma garota mandando um torpedo
para um colega, resolve dar um exemplo dizendo:
– É,
pessoal, até pra usar o celular tem que saber português. Quem não sabe usar a
língua fica enviando mensagens cheias de erros.
Nesse
instante, um bonitão sarado resolve mostrar seu linguajar pós-moderno.
– Aí,
galera, o professor viajou na maionese. A gente até que mandamos bem o purtuguês,
falou? Agora, se tu acha que a gente não sabemos, quanto mais
a galerinha que tá do outro lado... Eles escrevi
pior do que a gente escrevemos.
A classe inteira achou a
piada muito engraçada, menos o chato do professor. Coitado de seus ouvidos
gramaticais...
Por outro
lado, tem professor que até que é bem legal. Deixa a turma bem à vontade. Quem
quiser colar, que cole, ele não pega no pé de ninguém. O problema é que não se
aprende nada com ele, só quem já sabe. E tem aluno por aí que sabe muito, é
fera em matemática, português, inglês... mas é chato, não dá cola a ninguém, e
geralmente usa óculos. Será que aprender muito faz mal a vista? Porque se faz,
é bom nem aprender, pois usar óculos não é nada legal.
Por falar
em óculos, sei de uma garota que fazia questão de ser legal. É difícil ser
legal. Usar óculos é bem mais fácil, não há nem comparação.
Mas como
ia dizendo, essa garota míope certa vez foi convidada para passar as férias na
casa de praia de uns amigos e, como era muito branquinha, comprou um bloqueador
solar recomendado pelo dermatologista, e que era bastante caro. No primeiro
dia, tudo tranquilo. No segundo, aquele povo prestativo, que tudo que tem é de
todos, começa a oferecer coisas e favores, cheios de “boas intenções”. Sem contar
que esses legais falam pelos cotovelos... adoram ser extrovertidos, e assim se extrovertem
até onde não os cabe.
– Nossa!
Você usa esse bloqueador? Eu também. Ele é tudo de bom. Comprou onde? Quanto
foi? Caramba! Como foi barato. Lá onde eu compro é quase o dobro desse preço.
Não comprei porque tava em
falta... Posso pegar um pouquinho?
Mesmo desagradando a si mesma, a convidada concorda.– Claro,
fique à vontade...
A
espalhafatosa, então, muito à vontade deixa até de usar o que é seu para
aproveitar o alheio.
Nos
últimos dias de férias, a gentil não podia nem mais se expor ao sol porque não
tinha uma gotícula sequer do seu rico bloqueador. A outra, por sua vez, resolve
se desculpar, muito compadecida:
–
Mulher... Acabaram seu protetor, tadinha... Mas deixa estar que amanhã eu vou
dar uma volta por aí e vejo se encontro um bloqueador igual ao seu.
Logo após,
segue-se aquela sessão de “não se preocupe”, “não precisa”, “faço questão”,
“imagina” etc. Porém, o que todo mundo sabe é que essa troca de gentilezas
sempre favorece os mais espertinhos. E, ao que parece, as pessoas legais são
muito espertinhas...
É terrível
essa coisa de ser branco demais! Bom mesmo é ter pele morena, bronzeada, uma
cor mais escurinha. Mas, aí vem o racismo. As pessoas adoram se divertir
fazendo piadinhas com o negro. Não fazem por mal, não. É só de brincadeirinha.
É superlegal essa coisa de ridicularizar pessoas – gordo, baixinho, careca,
narigudo, vesgo, homossexual, solteirona encalhada – desde que a pessoa em
questão não seja você, nem alguém da sua família, nem alguém de quem você gosta
muito. Porque se for, aí não tem graça nenhuma. Qualquer um que resolva
afrontá-lo com piadinhas de mau gosto – pode ser seu melhor amigo – deixa de
ser legal imediatamente.
E agora, ser ou não ser? Sinceramente, não quero ninguém por aí me
chamando de legal, não. É chato demais ser legal. Quem é legal, não pode se
irritar nunca, mesmo quando meio mundo resolve saturar a sua paciência, isso
sabendo que você não está num bom dia. Experimente dizer em casa ou no seu
local de trabalho que está estressado, irritado ou com dor de cabeça, e peça
para lhe deixarem em
paz. Geralmente não deixam. Você tenta outra vez. Se não
deixam, você, então, perde a paciência e o título de legal que levou anos para
conquistar. Decididamente, não é fácil agradar. É mais simples ser chato. Já
reparou que as pessoas falam menos mal do chato? Sim, porque ele tem o direito
de dizer um não se alguém lhe pedir um CD emprestado. E quando o que pediu o
empréstimo vai comentar com outro chato, esse trata de lhe refrescar a memória
dizendo:
– Também, todas as vezes que você pede um CD emprestado só falta não
devolver e quando devolve o bicho tá todo arranhado...
Felizmente, os chatos se entendem. Um não pede nada emprestado ao outro,
isso para dar o exemplo e porque entende que um chato detesta emprestar os
objetos que adquiriu com tanto esforço, e pelos quais tem grande zelo e
carinho.
No entanto, as pessoas legais, que dividem tudo com todos e que tudo dos
outros tem que ser seu, quando percebem o zelo e a organização que alguém tem
com suas coisinhas, abre a boca e diz:
– Ô, besteira, parece que nunca teve nada na vida!
E assim passeiam esses seres simpáticos pela vida afora, falando mal de
quem não é igual a eles. Divertindo-se, fazendo gracinhas com os defeitos
alheios, dando gargalhadas espalhafatosas, arrotando alto, emprestando e
pedindo emprestado, classificando, em infinitos concursos, quem é chato e quem
não é.
Enfim, a chatice humana é uma questão tão importante e tão interessante
que até merece uma ciência só para ela: a chatologia. Essa ciência
acredita que todo e qualquer ser humano tem direito a sua parcela de chatice. É
bem verdade que existe controvérsia no momento de definir o que é chatice e o
que não é. Existem os chatólogos que defendem que o chato comedido é
aquele que encaixa a sua chatice num momento bem apropriado. Todavia, chato
mesmo é aquele que nega a sua chatice e se apresenta como modelo de perfeição.
Por outro lado, aqueles que discordam de tudo e de todos, os chatos que acham
que apenas eles mesmos são os donos da verdade e do saber, não se constituem
objetos de estudo dessa área de investigação, pois pertencem a outra
classificação: são os chamados in-su-por-tá-veis, ficando, portanto, o
seu estudo além dos limites da chatologia.
Existem alguns chatólogos que
acreditam que o uso moderado da chatice é um excelente remédio para quem quer
se defender ou evitar aborrecimentos futuros ainda maiores. Saber se equilibrar
na linha imaginária da chatice máxima permitida é o grande segredo do bem
viver, do amar e ser amado.
Enfim, assim como na boa culinária, a vida também precisa de tempero,
por isso, “os muito legais que me perdoem, mas uma pitada de chatice é
fundamental”. É isso aí: “That’s the question”. E não é de agora que se indaga
sobre essa questão. Até Shakespeare queria saber: “Ser ou não ser?” E, para
encerrar com uma reflexão bem filosófica, por que não dizer:
– “Ser chato é humano; não ser, é divino”.