ELE é um excelente fotógrafo, ELA uma escritora magnífica.
Crianças
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Trecho do conto de Margarete Solange
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A leitura é para mim uma companheira inseparável. Quando leio,
converso com os livros, concordo ou discordo dos autores, às vezes choro ou dou
boas gargalhadas. Eu e a leitura brincamos juntas, desde sempre. Desde quando
eu ainda estava descobrindo o mundo das palavras. Foi mágico descobrir que os
livros falavam e que, através do faz de conta, eu podia entrar no colorido das
ilustrações para viver a história.
A leitura é o princípio e o
meio, a morte é fim. O homem pode não ser rico, mas se ele tiver na bagagem a
leitura, será mais que isso: será sábio. A sabedoria, sem dúvida, é grandiosa,
é tudo na vida, não na morte. Na morte, todos os homens são igualmente leigos.
Desde pequenina, esconde-se
dentro de mim um ser escritor que tem lá seu lado tímido ou tolo, assustado
talvez, mas que, por vezes, permanece alerta, registrando tudo que lhe acontece
em volta. Quer
dizer, nem tudo, mas certos episódios que terminam sendo transladados da
realidade para a literatura.
Tenho aprendido que a
literatura imita a realidade, e que a realidade por vezes não tem lógica. A
obra literária mostra o possível, o provável, porém através dela o improvável também
é possível. Qualquer asneira pode ser uma grande obra, tudo depende da teoria
inventada para justificar o absurdo. O fato é que, feio ou bonito, simples ou
complexo, com lógica ou sem lógica, aquilo que é revestido de arte, para uns ou
para outros, torna-se precioso e belo, simplesmente porque é arte.
Com a chegada da velhice, o
escritor desata a registrar suas memórias buscando eternizar acontecimentos que
não gostaria que fossem apagados da lembrança, com o passar do tempo, ou
tragados pelo esquecimento. Ainda assim, o leitor deve ser cuidadoso com aquilo
que instintivamente considera autobiográfico, visto que – digo por experiência
própria – certas narrativas que os leitores imaginam ser memórias, alguns
parentes e amigos mais chegados classificam como sendo mentiras. Um escritor é
um ator que representa vários papéis ao mesmo tempo. Entretanto, por culpa do
narrador de primeira pessoa, acaba levando broncas imerecidas por parte dos
leitores, ou mesmo da família. Isso de certa forma é divertido; no entanto, se
porventura um professor ou estudante de literatura atribui as ações do eu
narrador ao autor da obra, isso se torna um tanto quanto lamentável, porque
esses deveriam saber que um escritor, usando a primeira pessoa, pode atuar
sendo quem ele quiser.
A memória escrita resiste ao tempo, por
isso escrevo. Porém, desejo, de todo o meu coração, que a velhice não me roube
a lucidez, nem por um só momento. Ela não está tão perto, mas se avizinha
matreira. Posso vê-la no espelho pintando os meus cabelos de branco. Permito
que eles fiquem assim porque desejo enfrentá-la sem grandes sustos.
Em cada canto da casa ponho um relógio bem
grande. Não se pode deter o tempo, mas é prudente vigiá-lo de perto. Manter
olhos atentos e ouvidos aguçados para captar cada detalhe da vida. Da própria
vida e da vida do outro, claro. Não que um escritor seja dado a fofocas,
trata-se unicamente de seu material de trabalho. E esse pode estar em qualquer
lugar, por toda parte, a qualquer hora.
[...]
[...]
Crianças
Fotografias de Felipe Galdino
Contos Reunidos
Sarau das Letras,
2014, p.98-109
Trecho do conto
Crianças
Fotografia de
Felipe Galdino