Uma mulher que Guerreia e mata:
papéis
invertidos na representação do feminino no romance “Rebeca” de Margarete
Solange
Jucymário
de Lima Silva
Jozadaque Pereira da
cunha
Rebeca: resumo da obra
Narrado em terceira pessoas, por um narrador
onisciente, provavelmente, algum escriba, o romance Rebeca da autora Margarete
Solange, cuja trama se desenvolve num ambiente de guerras, apresenta como
protagonista uma mulher heroína despida de fragilidade e munida de bravura para
enfrentar perigos e matar, quando necessário, aqueles que são seus inimigos. Estruturado
em onze capítulos, a trama se passa na época do
rei Nabuconosor e utiliza-se de linguagens e simbologias bíblicas, mostrando
algumas tradições relativas ao povo judeu em tempos remotos.
Introduzindo a obra, um homem chamado
Nicodemos Parmenas, em seus últimos dias de vida confessa que quando jovem
encontrou o pergaminho escrito em aramaico, enterrado as margens do Mar Morto
quando participava de uma expedição à Palestina. Escondeu o achado entre seus
pertences e dedicou sua vida inteira estudando esse dialeto até ser capaz de
traduzir a obra.
Aos dezessete anos Rebeca deixa a
casa de seu pai Eliacim porque é dada em casamento a um guerreiro do povo amonita.
Cinco anos depois seu marido morre na guerra. Como era extremamente bela, seu
sogro passa a cobiçá-la. Fingindo consentir com as intenções de Hatus, Rebeca
ganha tempo para realizar sua fuga. Ajudada por seu irmão Ismael foge e
esconde-se em um vale chamando Sitim. Ismael ensina-lhe como usar uma faca para
se defender e parte para buscar seu pai para que esse, por vingança, não fosse
morto pelo sogro de Rebeca. Dias depois, Rebeca avista pelos arredores um
guerreiro que enlouqueceu porque ao voltar da guerra encontra sua aldeia
destruída e queimada pelos soldados inimigos. Chamava-se Natanael. Vendo que
perdera toda família, entra em depressão profunda e, por fim, perde a
consciência passando a habitar no vale de Sitim, onde adquire um aspecto
animalesco e selvagem.
Dois espias que passam pelo vale apedrejam o
louco deixando-o moribundo, porém com o auxilio de uma erva milagrosa, Rebeca o
ajuda a curar-se. Pressentindo que os dois malfeitores irão voltar, ela traça
um plano, e com ajuda do louco consegue matá-los. Tempos depois, os dois infiltram-se
num acampamento inimigo e, novamente, seguindo um plano traçado por Rebeca,
Natanael vai de tenda em tenda matando os soltados inimigos que depois de
bêbedos dormem profundamente.
Levam a cabeça do Marechal do exército
inimigo para a aldeia dos amonitas e lá hospedam-se em casa de um homem rico e
poderoso. Esse acreditando que Rebeca é irmã de Natanael, deseja casá-la com
seu filho. Natanael promete que vai consultá-la para dar uma resposta, porém ao
fazer isso, confessa que não a ama como uma irmã e sim como uma mulher que
deseja para si. Ao saber disso, e vendo-o com boa aparência, Rebeca faz sua
escolha: rejeita o casamento com o jovem rico e foge com Natanael.
Já morando na aldeia de Eliacim pai
de Rebeca, nasce seu primeiro filho, Daniel. Algum tempo depois Natanael parte
para guerra. Tendo ficado somente as mulheres, velhos e crianças na aldeia,
Rebeca arquiteta um plano e luta bravamente para defender sua gente. A partir
de então, passa a ser ouvida e admirada sendo tratada com as mesmas honras
destinada aos anciões do povo.
Ao voltar da guerra, Natanael
novamente encontra sua aldeia destruída. Então sai em busca de Rebeca que fora
levada por um soldado inimigo. Fingindo submissão, ela mata o soldado e se
apossa de seu cavalo. Encontra-se com Natanael que delira entre a vida e morte.
Ele mais uma vez escapa e vive juntos por longos anos. Quando já velho ele morre,
Rebeca continua sendo louvada. E assim, muitos ouvem falar de sua bravura e vem
de longe para conhecê-la. Nenhuma decisão importante é tomada sem que a
matriarca seja ouvida. Por fim, o lugar onde mora passa a ser conhecido como “a
aldeia de Rebeca”.
Papéis invertidos na representação do feminino no romance “Rebeca” de
Margarete Solange
Viúva aos vinte e seis
anos, Rebeca expressa o desejo de voltar para a casa do pai, porém seu sogro,
homem já velho e bastante rico, não consente porque deseja tê-la como concubina.
Para conquistá-la dava-lhe ricas joias e presentes, mandava que fizessem para
ela os melhores vestidos. Diante disso, ela mostra-se satisfeita e para ganhar
tempo, pediu-lhe que esperasse ainda mais alguns meses já que ela era viúva de
seu filho. Fingindo um comportamento submisso, ela trapaceava o inimigo e ganhava
tempo enquanto planejava sua fuga sem despertar a fúria daquele que não desejava
ter como amante. Sua beleza e inteligência lhe valiam mais que músculos. Dessa
forma conquistava seus intentos: “Hatus achou que era sábio o seu conselho e,
para não desagradá-la, decidiu esperar conforme havia pedido” (MORAES, 2000, p.12).
Secretamente comunicou ao
irmão as intenções do sogro e planeja sua fuga preparando-se de todas as
maneiras para enfrentar a viagem de muitos dias. “Rebeca era valente. Se
tivesse nascido homem, seria um grande guerreiro” (p.12). Contudo, conhecendo suas
limitações por ter nascido mulher, ela age valendo-se da inteligência. Assim,
chegado ao vale, esconde-se em uma caverna e convencendo ao irmão de que está
segura, pede-lhe que prossiga a viagem para buscar seu pai, pois sabe que o seu
sogro, poderá matá-lo para vingar-se dela. Assim sendo, novamente ela consegue
fazer com que sua vontade prevaleça, conforme pode ser evidenciado na passagem
a seguir:
Ismael entristeceu-se,
porém sabia que sua irmã estava com a razão. Se não se apressasse em sair em
busca de Eliacim, seu pai, Hatus poderia mandar matá-lo, a fim de vingar a
afronta que a nora lhe fizera. Ele não
costumava perdoar a quem o desafiasse. Assim, como ela insistisse que deveria
partir, acabou por concordar.
– Irei porque me pedes... Teus conselhos me parecem
sábios... [...]
– Rebeca [...] Mantinha os olhos fixos no
horizonte, evitando fitar-lhe o rosto para que não percebesse a tristeza que
havia em seu olhar. Tentou mostrar-se confiante, só assim ele partiria mais tranqüilo
(MORAES, 2000, p.13)
Antes
de partir, seu irmão tratou de “ensinar a Rebeca todos os cuidados que deveria
ter para sobreviver naquele lugar deserto. Mostrou-lhe como cravar sua faca no
inimigo, caso ele investisse contra ela para molestá-la. Ela recebia as lições
com atenção e coragem, o perigo não a assustava” (p.13). Para ela qualquer
adversidade que enfrentasse seria melhor que ser amante de um homem por quem
tinha repulsa. Rebeca era uma mulher que fazia escolhas e não dependia da força
e proteção de um marido para lhe defender.
No
capitulo três, avista um valente que se vivia no vale como se fosse um animal
selvagem. Ele enlouquecera porque ao voltar da guerra, encontrou sua aldeia
saqueada e queimada: toda sua agente estava morta.
Depois de alguns dias
dois homens que vieram do acampamento dos assírios espiar as aldeias do
amonitas, apedrejaram o louco deixando-o moribundo. Vendo que não tinha mais
jeito para a pobre criatura pegou uma pedra grande e aproximou-se para abreviar-lhe
o sofrimento. Vendo a pobre criatura ensanguentada, sente piedade e lhe dirige
a voz dizendo: “Perdoe-me, senhor... faço isso para seu próprio bem”
(p.15). Nesse momento, mesmo mostrando
ser uma pessoa capaz de matar, coisa que não é propriamente o perfil das mulheres,
ela não perde com isso as características femininas tais como a sensibilidade e
a docilidade, por exemplo. Com isso, diferencia-se daqueles (geralmente do sexo
masculino) dispostos a matar por ira, vingança ou para apropriar-se dos bens de
outrem. A razão para tirar a vida do louco, é claramente abreviar o seu
sofrimento. De repente, percebe pelos arredores uma planta de poder curativo
então desiste de seu intento.
Nessa passagem,
evidencia-se uma inversão no que diz respeito à representação convencional do
masculino e feminino, uma vez que a figura masculina está fragilizada e
inferiorizada pela loucura e pelos ferimentos. Dessa forma, ele estava sob o seu domínio.
Para poder cuidar de suas
feridas, Rebeca “retirou a cinta que o louco usava em volta de seus lombos e
com ela amarrou-lhe as mãos. Com o véu que cobria a cabeça prendeu-lhe os pés”
(p15). E embora ele tentasse alcançá-la enquanto ela dormia, avançando em sua
direção e rugindo como uma fera, ela não se intimidava. Para dominá-lo, usava a
voz sem temor, com autoridade, proferindo comando tais como: “Cala-te, criatura
lunática! E mais adiante, “Aquieta-te
criatura débil e eu te darei água para beber” (p.. 16) e, assim, o selvagem
acabava por obedecer-lhe, aquietando-se. Mesmo conseguido mantê-lo sob controle,
Rebeca estava sempre vigilante porque imaginava que aquela criatura selvagem
seria “capaz de matá-la enquanto dormisse” (p. 17).
Rebeca ocupava posição
privilegiada em relação ao homem, situação um tanto incomum especialmente por
tratar-se de uma história que tem como cenário o tempo antigo no qual a mulher
não tinha grande valor. Pelos padrões convencionais da época, a mulher era quem
precisava de um salvador, um homem que a protegesse do medo, dos perigos e dos
assédios de outros homens. Contudo, foi ela quem salvou Natanael e, mesmo não tendo
a força física de um homem, conseguiu dominá-lo. A superioridade que a favorecia
era circunstancial, não era propositadamente estabelecida por ela. Ele
precisava de ajuda porque estava gravemente ferido, mas era louco e selvagem
como um animal, por isso ela precisava dominá-lo para proteger-se.
Na obra “Rebeca” os
papéis se invertem no que diz respeito a história convencional na qual a mulher
de alguma maneira é “salva” pelo homem, seja através do casamento ou numa
situação de perigo. Portanto nessa história, a mulher é representada como sendo
a figura salvadora. Vê-se aqui que a situação de privilégio e dominação recai
sobre a mulher.
Nesse episodio, Rebeca
não precisou matar, contudo, mataria se não tivesse outra alternativa, como
acontece em outras passagens que ocorrem mais adiante nos capítulos quatro e
dez, quando se encontra em situações nas quais seria maltratada, abusada, e provavelmente
morta.
Depois de quarenta dias,
os malfeitores que apedrejaram Natanael voltaram ao vale. Rebeca explicou seu
plano para matá-los e só então libertou o louco. Ficou sozinha na fonte porque
sabia que era para lá que os dois homens iriam a fim de beber água. Sentou-se
fingindo-se de frágil e desamparada para que com isso os inimigos não a tivessem
por ameaça e assim, pudessem ser atraídos por ela até onde Natanael estava
escondido para atocaiá-los. Quando um dos homens a segurou pelos cabelos, ela
fingindo chorar implorava pedindo piedade, então o “inimigo acreditou na sua
fragilidade. Além disso, deixou-se fascinar por sua formosura. Consolou-a
prometendo que não iria lhe fazer nenhum mal” (p.24)
Entre soluços disse que
havia um homem morto entre as pedras e indicou o local. Então um deles foi até
lá e foi morto por Natanael que rachou sua cabeça com uma pedra conforme
narração do trecho a seguir:
Rebeca apontou um lugar
distante e desatou novamente a chorar. O soldado afastou-se em direção as
pedras altas, a fim de tentar enxergar o lugar onde o morto jazia. Nesse
instante, o outro estendeu os braços e puxou a bela mulher para junto de si, a
fim de que chorasse apoiada junto a seu peito. Ela, cautelosamente, retirou a
faca que trazia escondida em seu bolso e cravou-a, várias vezes, nas costas do
espia à altura de seu coração. A agilidade de Rebeca foi tamanha que o homem
mal teve tempo de perceber o que havia acontecido. Equilibrou-se por alguns
instantes, fitando-a atônito. Esboçou um sorriso como se estivesse elogiando-a
pela sua coragem e valentia. Caiu morto sobre a viúva, derrubando-a no chão.
Ela esforçava-se para sair
de baixo do morto, quando Natanael, que já havia rachado a cabeça do outro
soldado inimigo, apressou-se em ajudá-la. Rolou o corpo do homem para o lado e a
levantou do chão. Examinou-lhe as vestes ensangüentadas, procurando se certificar
de que não estava ferida. Fitou o rosto da moabita muito admirado de sua
coragem, fazendo-a notar que já não tinha o olhar alucinado. Estava em seu
juízo perfeito. Com mãos fortes arrastou os soldados inimigos para um lugar
distante para que fossem devorados pelas aves do céu. Rebeca sentou-se junto às águas e lavou suas
vestes (MORAES, 2000, p.24-25)
Apesar de não ser
privilegiada pela força bruta, proveniente da estrutura biológica que favorece
o corpo masculino, conforme trata Bourdieu (2002) em seus estudos sobre a
dominação masculina, Rebeca compensava essa carência com habilidades adquiridas
com planejamento e esperteza. Sabia aguardar o momento de agir, planejava o que
deveria fazer e aproveitou a força masculina quando conquistou o louco como
aliado. Dessa forma, ela conquistava seu espaço, mostrava que tinha valor, que
era capaz de lutar para se defender e para conquistar seus objetivos. Não sendo
dotada de força física, podia subjugar seu inimigo usando para isso certos
protótipos atribuídos às mulheres com forma de enganar e enfraquecer o
adversário. Acreditando em sua aparência de fragilidade e inferioridade, relaxavam
com a vigilância e cuidado, e assim, mesmo tendo força física inferior ela
prevalecia.
A partir de então o louco
recuperou seu juízo, e evoluindo de sua condição de selvagem equiparou-se a
Rebeca, contudo ainda assim, ela estava no comando porque arquitetava os planos
que ele deveria executar. Um desses planos traçados por ela seria entrar no
acampamento dos soldados que vigiavam o povo amonita para guerrear contra ele.
Quando estivesse dormindo embriagados, eles os visitariam em suas tendas
enquanto dormissem e matariam um a um, o máximo que pudessem. Natanael achando
o plano arriscado, resiste e aconselha que ela volte para junto de seu povo.
Mas ela não pode voltar porque o seu sogro a encontraria. Diante disso, declara
que prefere morrer tentando atrasar o ataque dos assírios do que cair nas mãos
de seu sogro. E novamente tenta convencê-lo explicando seu plano, como se percebe
no trecho a seguir:
Invadiremos seu acampamento durante a noite, a mim não
importa que me matem, estou disposta a morrer para ajudar meu povo. – Fitou
Natanael com olhos penetrantes e o desafiou: – Se não tens coragem suficiente
para enfrentar os inimigos, irei sozinha!
Percebendo que não a faria mudar de idéia, iniciaram a
jornada. Por três dias procuraram, até que, foram surpreendidos por dois
soldados enquanto espiavam, à distância, o acampamento dos assírios. Natanael,
para não ser morto por eles, bambeou em suas pernas e babou fingindo-se de
louco. Mandou que Rebeca lhes dissesse que ele era seu irmão, doente de
nascença. Eles acreditaram imediatamente, visto que estava maltrapilho e sua
barba, unhas e cabelos estavam bastante crescidos.
– Tenha misericórdia de nós... – disse ela
inclinando-se diante dos inimigos. – Sei que são dos exércitos dos assírios,
seus espias foram apanhados pelos amonitas.
Sou moabita, mas estava no meio deles e sei tudo que planejam. Estão
juntando os seus exércitos para virem ao vosso encontro. Poupe a minha vida e a
de meu irmão e lhes direi como podem fazer para chegar até eles sem que sejam
percebidos. Meu marido era amonita, porém morreu, como era pobre, me deixou
desamparada no meio de seu povo. Sigo em busca de uns parentes distantes, tudo
que me restou na vida foi esse irmão meu... louco de nascença.... pobrezinho...
– lançou um olhar piedoso em direção a Natanael que fazia o que podia para
aparentar ser realmente falto de juízo. – Ele segue-me onde quer que eu vá como
se fosse um cão fiel...
Rebeca entregou-lhes o alforje, que carregava
traspassado em seus ombros, para que visse que nada havia dentro dele além de
um pouco de comida. Sua faca e suas
jóias, estavam escondidas debaixo de suas vestes.
– Leve-me até o príncipe de teu exército e a ele
revelarei os segredos dos amonitas e indicarei um caminho por onde devem ir
para atacá-los sem que percebam quando vierem eles a caminho (MORAES, 2000, p.
28-29).
Nesse trecho, a obra
remete a um episódio bíblico escrito no primeiro livro de Samuel no qual Davi
fingi-se de louco para escapar da morte. Por outro lado, esse mesmo episódio faz
alusão à passagem bíblica no livro de Gênesis na qual Abraão temendo que os
egípcios o matem para tomar sua esposa Sara que é muito bela, pede que ela lhe
diga que é sua irmã.
Quando levam Rebeca a
presença do Marechal dos assírios, esse imediatamente encanta-se com sua beleza.
Admirou-se também de como falava com desembaraço e por isso acreditou em tudo
que ela dizia. Sentindo-se vitorioso por conhecer as estratégias do inimigo, proclamou
uma festa e ofereceu banquete aos seus oficiais. Quando estava bastante alegre
por causa do vinho mandou que um dos seus chefes persuadisse a estrangeira a
torna-se sua concubina. Ter concubinas era costume dos antigos especialmente
daqueles que tinham riqueza e que podiam sustentá-las com presentes. Eram uma
espécie de segunda esposa ou amante com finalidade de proporcionar-lhes sexo e
também de aumentar o número de seus filhos (Coleman,
1991). Entre os assírios era motivo de grande vergonha que uma mulher se
recusasse a esse convite, caso o fizesse para não ser desmoralizado era comum
que fosse possuída à força (MORAES, 2000). As passagens a seguir mostram como
Rebeca resolveu reagir diante do convite:
Ao ser informada do desejo
de Bartos, Rebeca lançou um olhar discreto em direção a Natanael e ele lhe
acenou levemente a cabeça, dando-lhe sinal de que deveria aceitar. Dessa forma,
fingindo-se estar honrada com a decisão do marechal, prontificou-se de bom
grado a ir vê-lo em sua tenda. Natanael a seguia troncho, coxeando sobre as
pernas, ela dirigia-lhe a palavra, de vez em quando, como se falasse com um cão
de sua casa. Ao chegar diante da porta do aposento do maioral dos assírios,
mandou que a esperasse do lado de fora. E assim ele fez [...] Procurando encantá-lo com palavras
agradáveis, Rebeca fazia elogios aos requintes de sua tenda, demonstrando
grande admiração, como se nunca tivesse visto antes tão deslumbrantes vasos de
ouro e prata [...] Falava sem parar, enquanto ele se embriagava com o muito
vinho que bebia. Natanael entrava, vez por outra, no aposento, fazendo coisas
engraçadas e Bartos dava ruidosas gargalhadas. A viúva formosa fingia enxotá-lo
e com isso ganhava tempo, visto que o maioral dos assírios embriagava-se e mal
podia manter-se em pé sobre as próprias pernas (MORAES, 2000, p. 30-31).
Quando todos os soldados
se recolheram em suas tendas embriagados pelo vinho, Rebeca chamou Natanael,
então ele matou o Marechal usando para isso a própria espada do valente. Rebeca
permaneceu na tenda ao lado do morto, enquanto Natanael sorrateiramente
percorria as tendas dos oficiais e os matava com lança que levava consigo. Os
que escaparam da morte, na manhã seguinte espalharam a notícia de que foram
visitados por muitos homens do exercito dos amonitas enquanto dormiam. Desorientados,
apavorados e enfraquecidos pela morte de seu Marechal e oficiais, se desentendiam
e assim fugiram espalhando-se pelo vale.
Com isso, os papéis se
invertem novamente, visto que sendo mulher e tendo somente um único aliado
consigo, Rebeca consegue, usando a astúcia, inteligência e alguns artifícios
femininos enfraquecer a vigilância e a ação do exército inimigo, fazendo com
que esse ao invés de avançar para atacar a aldeia de um povo despreparado para
guerra, batesse em
retirada. Com isso, a trama mostra que muitas vezes o
planejamento, a prudência e a inteligência fazem triunfar muito mais que a
força bruta. E que as mulheres são capazes de fazer valer sua vontade e conquistar
seus horizontes tirando proveito até mesmo daquilo que aparentemente se
constituí como “fraqueza”.
No capitulo nove, Rebeca
passa por uma situação de preconceito. Natanael e os demais homens da aldeia do
pai de Rebeca, onde agora vive com seu marido e seu filho, são convocados para
irem lutar na guerra.
A aldeia de Eliacim era
pequena e os que ficaram eram velhos, mulheres e crianças. Vendo que os
inimigos avançavam em direção a aldeia, Rebeca juntou o povo e disse que para
que não morressem todos, as mulheres que fossem mães deveriam fugir para
escaparem com suas crianças pequenas até que os inimigos tivessem passado pela
aldeia. Desse modo, como ela tinha um filho de colo que ainda mamava, deveria
partir com aqueles que estavam destinados a viver. Samir, um adolescente que,
por ser corajoso, desejava comandar o ataque aos inimigos, queria que ela fosse porque não lhe agradava o
fato de estar sendo liderado por uma mulher. Assim sendo, de um lado as
mulheres diziam: “Rebeca deve seguir conosco!”, então o menino querendo
livra-se dela esbravejava: “Acho melhor que sigas com os covardes [...] Não
precisamos dos conselhos de uma mulher para vencer os inimigos” (p.56).
Rebeca estava diante de
um impasse porque ela sabia que os dois lados precisam de um líder, e que ela
era esse líder em quem eles confiavam, sua simples presença trazia esperança
para aquela gente frágil e assustada, conforme narra o trecho a seguir:
O povo em derredor ouvia em silêncio. Seus
semblantes estavam turbados. Não havia esperança para eles, os inimigos não
teriam compaixão de nenhum deles. Deixariam que vivessem algumas das mulheres
mais jovens, porém o restante passaria pelo fio de suas espadas. Todos sabiam
que seria desse modo. E o coração de Rebeca agitou-se em seu íntimo pelos que
consentiram ficar. Sabia que desejavam que permanecesse com eles para lhes
dizer o que deveriam fazer quando os assírios os atacassem.
– Apressa-te!... – disse
Rebeca, pondo o seu filho nos braços da outra jovem moabita. – Cuidarás de teu
filho e do meu de igual modo. Se formos todos, eles desconfiarão que fugimos,
nos seguirão e rapidamente nos alcançarão por sermos muitos.
Sara abraçou Rebeca e
chorou. Em seguida, partiram levando o menino Daniel e as outras crianças da
aldeia.
– Não sei porque ficastes!...
– gritou Samir. – Não precisamos dos teus conselhos... Agora somos menos do que
éramos antes, tu mandastes embora os rapazinhos que podiam fazer emboscadas e
enfrentar com pedras os nossos inimigos... Não sei porque devemos ouvir a voz
de uma mulher.
– Devemos ouvi-la, porque
seus conselhos são sábios! – disse um ancião que estava assentado no pátio de
fronte a sua casa. – Os que se foram escaparão e estarão escondidos até que
acabe a peleja. Habitarão pelos montes e cavernas. Um dia retornarão e
começarão uma nova aldeia moabita. E não findará a nossa descendência sobre a terra
(MORAES, 2000, p.56).
Natanael e os outros que
foram com ele para guerra retornam e encontram “suas casas queimadas e muitos
mortos espalhados pelo chão” (p.59). Ao enterrarem os mortos percebem que não
havia crianças pequenas entre eles, então entendem que alguns escaparam. Sai a
procurá-los, e quando os encontra, fica sabendo que Rebeca não estava entre
eles porque tinha sido levada por um soldado que se encantou com sua beleza.
Parte em busca da esposa, contudo como estava gravemente ferido e torturado
pelas dores que sentia, agonizava chamando pela morte. Até que entre delírios
vê Rebeca surgindo com o vestido ensanguentado sem seu véu sobre a sua cabeça. Dessa
forma, mais uma vez, Rebeca tem a missão de salvá-lo da morte. Ela rasga o seu
vestido e com os pedaços ata suas feridas. Tão logo ele melhora, conversam
sobre o que aconteceu, ele desejava saber que mal lhe fez o maldito assírio,
ela então,
Retirou a faca que havia
colocado em sua cinta e a exibiu ao marido triunfante.
– Nenhum mal me fez o
maldito inimigo porque esperei quieta que ele viesse sobre mim e enterrei em
seu ventre esta faca. Fugi da presença do ímpio e fiquei escondida a
espreitá-lo. Quando vi que estava morto, voltei para buscar o que me pertencia
e, vendo que não necessitava mais do seu cavalo, o trouxe comigo. As aves do
céu comem as carnes do maldito nesta hora.
– E, onde está o cavalo
que trouxestes? – olhou os arredores.
Na verdade, o cavalo que
estava junto ao ribeiro fora trazido por Rebeca. Como agonizava quando chegou
junto às águas, Natanael não prendeu seu próprio cavalo e ele se foi, mas não
estava distante. Saíram à sua procura e não tardaram a encontrá-lo (MORAES,
2000, p.62).
De acordo com algumas
passagens bíblicas era costume dos guerreiros saquear os pertences dos inimigos
que eram vencidos. Dessa forma, Rebeca resolveu se utilizar desse costume,
tomando para si o cavalo que foi do assírio que ela matou. Nessa passagem, mais
uma vez ela utiliza como estrangeira a aparência de submissão e fragilidade
para enfraquecer o inimigo. E assim sendo, novamente foi capaz de lutar e se
defender sem a ajuda de um protetor do sexo masculino. Outra situação
recorrente que a coloca em situação de dominação, é o fato de mais uma vez
Natanael está gravemente ferido, beirando a morte, desse modo, novamente ela
surge para resgatá-lo. Uma vez que ele estava gravemente ferido, perdendo
sangue e delirando moribundo enquanto vagava a sua procura por lugares inabitados,
terminaria morrendo se ela não o tivesse encontrado.
No capítulo onze, depois
de sessenta dias, eles fazem a jornada de volta para casa. “Subiram em um monte
bem próximo de onde estavam acampados. Pararam os cavalos lado a lado
procurando enxergar o acampamento de sua gente” (p.64). O fato de eles voltarem
lado a lado cada um em seu cavalo é significativo visto que se Rebeca não
tivesse vencido o assírio e se apropriado do seu cavalo, ela voltaria trazida
pelo marido, o que a relegaria a uma posição secundária. Estando lado a lado,
indica uma condição de igualdade. E assim viveram por toda sua vida. Quando já
velho Natanael morreu, seu filho primogênito Elom tornou-se o maioral da aldeia,
porém “nenhuma decisão era tomada sem que se ouvisse também os conselhos de
Rebeca” (p.66). E quando ela passeava pela aldeia as pessoas saiam às portas
para vê-la, como se ela fosse uma rainha. “Embora fosse uma mulher, recebia as
honras que eram dedicadas aos anciões do povo. Ela era amada, respeitada e
admirada por todos” (p.66). Seus feitos
eram divulgados entre as gerações e se espalhavam pelas aldeias vizinhas. E pelo
resto de seus dias Rebeca foi tratada com honras e privilégio. Sua voz era
ouvida como era ouvida a voz dos anciões que eram homens já velhos com vasta experiência
de vida para dar conselhos. “E assim, o lugar habitado pelos descendentes do
guerreiro Natanael passou a ser conhecido até os dias de hoje como sendo ‘A
aldeia de Rebeca’” (p.66).
O fato da aldeia onde moravam ser conhecida
pelo nome de Rebeca, mostra que ela realmente era pessoa de prestígio, visto
que os lugares geralmente eram conhecidos por nome de homens. Uma aldeia
poderia ser conhecida pelo nome de mulher no caso de não haver a presença do
pai, de um marido ou de um irmão mais velho que fosse influente.
Segundo Bourdieu (2002),
o homem exerce dominação porque é favorecido pelos privilégios que procedem de
seu corpo, ou seja, domina porque sua natureza biológica lhe favorece para isso.
Com base nesse pensamento, o discurso moralista procura encontrar no corpo
feminino a justificativa para enquadrar a mulher em regras e normas que limitam
seu comportamento. Assim, de modo geral as mulheres são vistas de acordo com
certos estereótipos como: fragilidade, insegurança, inferioridade e dependência
dentre outros. Entretanto, mesmo sendo mulher e existindo num tempo em que a
mulher viva debaixo da dominação masculina e comportava-se com total submissão,
Rebeca foge as esses padrões. Seu corpo de mulher não limitava sua atuação. Assim
sendo para sobreviver num contexto de guerras, ela era levada a realizar feitos
que não eram condizente com comportamento feminino. Dessa forma, ela fazia
sempre mais além daquilo que se esperava de uma mulher.
Considerações finais
Embora a história de Rebeca
se passe em um tempo muito antigo, em um período em que havia muitas restrições
imposta à mulher no que refere a sua atuação social e valor pessoal, a
protagonista em toda sua trajetória foge a esses padrões que reduzem a mulher a
uma condição de inferioridade.
O enredo
mostra a atuação de uma heroína que enfrenta e vence bravamente qualquer perigo, e para isso não precisa
necessariamente ter ao seu lado uma figura masculina para protegê-la e
defendê-la. Ela faz a sua própria defesa, lutando, ferido e matando quando se
faz necessário. Não se enquadrado, portanto, no estereótipo da mulher frágil,
indefesa, inferior. Ao contrário disso, ela usa a sua inteligência que serve de
escudo e arma, e mesmo sem ser dotada com a mesma força física de um homem, ela
consegue subjugar o inimigo. Com isso, não perde sua feminilidade porque mata
para sobreviver, mata porque vive entre guerras e precisa proteger a si mesma
daqueles que investem contra ela para fazer o mal, equiparando-se em ações à
figura masculina do herói guerreiro, personagem que, em tempos antigos, tinha a
simpatia do povo.
Portanto,
na obra de Margarete Solange a figura feminina é retratada não sob a
perspectiva da insignificância ou inferioridade atribuída as mulheres nos tempo
em que o patriarcalismo limitava sua atuação ao espaço doméstico. Ao contrário
disso, Rebeca ocupa posição de heroína, tem vontade própria, a sua voz é
ouvida, o que a faz diferente dos padrões estabelecidos de submissão e dependência.
Aproveita-se da imagem de fragilidade e carência com a qual a mulher é vista
para tirar proveito das situações e enfraquecer os inimigos e vencê-los. Enfim,
Rebeca é uma mulher que vai a luta, peleja e mata para não ser abusada ou
relegada a posição de concubina de homens aos quais desprezava e não desejava
ter por marido ou amante.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. São Paulo, Editora Nova
Fronteira: 1949.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Künher. 2 ed. Rio de Janeiro: Mertrand Brasil, 2002.
COLEMAN, William. Manual dos tempos e costumes Bíblicos. Belo Horizonte, Betânia, 1991
Moraes, Margarete Solange. Rebeca. Mossoró, Santos, 2000.
FOLLADOR, Kellen Jacobsen. A mulher na visão do patriarcado brasileiro: uma herança ocidental. Revista fato&versões, n.2 v.1, p. 3-16, 2009. Disponível em <www.catolicaonline.com.br/fatoeversoes ISSN 1983-1293> acesso em, 07 set de 2013
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In Bonicci, Thomas & ZOLIN, Lúcia Osana (Org). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3 ed. Maringa: Eduem, 2009, p. 217-242.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Künher. 2 ed. Rio de Janeiro: Mertrand Brasil, 2002.
COLEMAN, William. Manual dos tempos e costumes Bíblicos. Belo Horizonte, Betânia, 1991
Moraes, Margarete Solange. Rebeca. Mossoró, Santos, 2000.
FOLLADOR, Kellen Jacobsen. A mulher na visão do patriarcado brasileiro: uma herança ocidental. Revista fato&versões, n.2 v.1, p. 3-16, 2009. Disponível em <www.catolicaonline.com.br/fatoeversoes ISSN 1983-1293> acesso em, 07 set de 2013
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In Bonicci, Thomas & ZOLIN, Lúcia Osana (Org). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3 ed. Maringa: Eduem, 2009, p. 217-242.
Sobre a autora
Margarete Solange,
Escritora brasileira do Rio Grande do Norte, nascida em Natal, é autora de poesias, crônicas, contos e romances.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Margarete_Solange
Margarete Solange,
Escritora brasileira do Rio Grande do Norte, nascida em Natal, é autora de poesias, crônicas, contos e romances.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Margarete_Solange
Sobre os autores do Trabalho
Jozadaque Pereira e Jucymário Lima,
Formados em Letras - com
habilitação em
Língua Espanhola.
Algumas partes do trabalho foram suprimidas nesta exposição,
Para ler o trabalho completo, acesse
Algumas partes do trabalho foram suprimidas nesta exposição,
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http://anaisdoceclit.blogspot.com.br/