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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Uma mulher que guerreia e mata



Uma mulher que Guerreia e mata: 
papéis invertidos na representação do feminino no romance “Rebeca” de Margarete Solange

Jucymário de Lima Silva
Jozadaque Pereira da cunha

Rebeca: resumo da obra
           

Narrado em terceira pessoas, por um narrador onisciente, provavelmente, algum escriba, o romance Rebeca da autora Margarete Solange, cuja trama se desenvolve num ambiente de guerras, apresenta como protagonista uma mulher heroína despida de fragilidade e munida de bravura para enfrentar perigos e matar, quando necessário, aqueles que são seus inimigos. Estruturado em onze capítulos, a trama se passa na época do rei Nabuconosor e utiliza-se de linguagens e simbologias bíblicas, mostrando algumas tradições relativas ao povo judeu em tempos remotos.
Introduzindo a obra, um homem chamado Nicodemos Parmenas, em seus últimos dias de vida confessa que quando jovem encontrou o pergaminho escrito em aramaico, enterrado as margens do Mar Morto quando participava de uma expedição à Palestina. Escondeu o achado entre seus pertences e dedicou sua vida inteira estudando esse dialeto até ser capaz de traduzir a obra.
Aos dezessete anos Rebeca deixa a casa de seu pai Eliacim porque é dada em casamento a um guerreiro do povo amonita. Cinco anos depois seu marido morre na guerra. Como era extremamente bela, seu sogro passa a cobiçá-la. Fingindo consentir com as intenções de Hatus, Rebeca ganha tempo para realizar sua fuga. Ajudada por seu irmão Ismael foge e esconde-se em um vale chamando Sitim. Ismael ensina-lhe como usar uma faca para se defender e parte para buscar seu pai para que esse, por vingança, não fosse morto pelo sogro de Rebeca. Dias depois, Rebeca avista pelos arredores um guerreiro que enlouqueceu porque ao voltar da guerra encontra sua aldeia destruída e queimada pelos soldados inimigos. Chamava-se Natanael. Vendo que perdera toda família, entra em depressão profunda e, por fim, perde a consciência passando a habitar no vale de Sitim, onde adquire um aspecto animalesco e selvagem.
 Dois espias que passam pelo vale apedrejam o louco deixando-o moribundo, porém com o auxilio de uma erva milagrosa, Rebeca o ajuda a curar-se. Pressentindo que os dois malfeitores irão voltar, ela traça um plano, e com ajuda do louco consegue matá-los. Tempos depois, os dois infiltram-se num acampamento inimigo e, novamente, seguindo um plano traçado por Rebeca, Natanael vai de tenda em tenda matando os soltados inimigos que depois de bêbedos dormem profundamente.
Levam a cabeça do Marechal do exército inimigo para a aldeia dos amonitas e lá hospedam-se em casa de um homem rico e poderoso. Esse acreditando que Rebeca é irmã de Natanael, deseja casá-la com seu filho. Natanael promete que vai consultá-la para dar uma resposta, porém ao fazer isso, confessa que não a ama como uma irmã e sim como uma mulher que deseja para si. Ao saber disso, e vendo-o com boa aparência, Rebeca faz sua escolha: rejeita o casamento com o jovem rico e foge com Natanael.
Já morando na aldeia de Eliacim pai de Rebeca, nasce seu primeiro filho, Daniel. Algum tempo depois Natanael parte para guerra. Tendo ficado somente as mulheres, velhos e crianças na aldeia, Rebeca arquiteta um plano e luta bravamente para defender sua gente. A partir de então, passa a ser ouvida e admirada sendo tratada com as mesmas honras destinada aos anciões do povo.
Ao voltar da guerra, Natanael novamente encontra sua aldeia destruída. Então sai em busca de Rebeca que fora levada por um soldado inimigo. Fingindo submissão, ela mata o soldado e se apossa de seu cavalo. Encontra-se com Natanael que delira entre a vida e morte. Ele mais uma vez escapa e vive juntos por longos anos. Quando já velho ele morre, Rebeca continua sendo louvada. E assim, muitos ouvem falar de sua bravura e vem de longe para conhecê-la. Nenhuma decisão importante é tomada sem que a matriarca seja ouvida. Por fim, o lugar onde mora passa a ser conhecido como “a aldeia de Rebeca”.

Papéis invertidos na representação do feminino no romance “Rebeca” de Margarete Solange

Viúva aos vinte e seis anos, Rebeca expressa o desejo de voltar para a casa do pai, porém seu sogro, homem já velho e bastante rico, não consente porque deseja tê-la como concubina. Para conquistá-la dava-lhe ricas joias e presentes, mandava que fizessem para ela os melhores vestidos. Diante disso, ela mostra-se satisfeita e para ganhar tempo, pediu-lhe que esperasse ainda mais alguns meses já que ela era viúva de seu filho. Fingindo um comportamento submisso, ela trapaceava o inimigo e ganhava tempo enquanto planejava sua fuga sem despertar a fúria daquele que não desejava ter como amante. Sua beleza e inteligência lhe valiam mais que músculos. Dessa forma conquistava seus intentos: “Hatus achou que era sábio o seu conselho e, para não desagradá-la, decidiu esperar conforme havia pedido” (MORAES, 2000, p.12).
Secretamente comunicou ao irmão as intenções do sogro e planeja sua fuga preparando-se de todas as maneiras para enfrentar a viagem de muitos dias. “Rebeca era valente. Se tivesse nascido homem, seria um grande guerreiro” (p.12). Contudo, conhecendo suas limitações por ter nascido mulher, ela age valendo-se da inteligência. Assim, chegado ao vale, esconde-se em uma caverna e convencendo ao irmão de que está segura, pede-lhe que prossiga a viagem para buscar seu pai, pois sabe que o seu sogro, poderá matá-lo para vingar-se dela. Assim sendo, novamente ela consegue fazer com que sua vontade prevaleça, conforme pode ser evidenciado na passagem a seguir:

Ismael entristeceu-se, porém sabia que sua irmã estava com a razão. Se não se apressasse em sair em busca de Eliacim, seu pai, Hatus poderia mandar matá-lo, a fim de vingar a afronta que a nora lhe fizera.  Ele não costumava perdoar a quem o desafiasse. Assim, como ela insistisse que deveria partir, acabou por concordar.
– Irei porque me pedes... Teus conselhos me parecem sábios... [...] – Rebeca [...] Mantinha os olhos fixos no horizonte, evitando fitar-lhe o rosto para que não percebesse a tristeza que havia em seu olhar. Tentou mostrar-se confiante, só assim ele partiria mais tranqüilo (MORAES, 2000, p.13)

            Antes de partir, seu irmão tratou de “ensinar a Rebeca todos os cuidados que deveria ter para sobreviver naquele lugar deserto. Mostrou-lhe como cravar sua faca no inimigo, caso ele investisse contra ela para molestá-la. Ela recebia as lições com atenção e coragem, o perigo não a assustava” (p.13). Para ela qualquer adversidade que enfrentasse seria melhor que ser amante de um homem por quem tinha repulsa. Rebeca era uma mulher que fazia escolhas e não dependia da força e proteção de um marido para lhe defender.
            No capitulo três, avista um valente que se vivia no vale como se fosse um animal selvagem. Ele enlouquecera porque ao voltar da guerra, encontrou sua aldeia saqueada e queimada: toda sua agente estava morta.
Depois de alguns dias dois homens que vieram do acampamento dos assírios espiar as aldeias do amonitas, apedrejaram o louco deixando-o moribundo. Vendo que não tinha mais jeito para a pobre criatura pegou uma pedra grande e aproximou-se para abreviar-lhe o sofrimento. Vendo a pobre criatura ensanguentada, sente piedade e lhe dirige a voz dizendo: “Perdoe-me, senhor... faço isso para seu próprio bem” (p.15).  Nesse momento, mesmo mostrando ser uma pessoa capaz de matar, coisa que não é propriamente o perfil das mulheres, ela não perde com isso as características femininas tais como a sensibilidade e a docilidade, por exemplo. Com isso, diferencia-se daqueles (geralmente do sexo masculino) dispostos a matar por ira, vingança ou para apropriar-se dos bens de outrem. A razão para tirar a vida do louco, é claramente abreviar o seu sofrimento. De repente, percebe pelos arredores uma planta de poder curativo então desiste de seu intento.
Nessa passagem, evidencia-se uma inversão no que diz respeito à representação convencional do masculino e feminino, uma vez que a figura masculina está fragilizada e inferiorizada pela loucura e pelos ferimentos. Dessa forma, ele estava sob o seu domínio.
Para poder cuidar de suas feridas, Rebeca “retirou a cinta que o louco usava em volta de seus lombos e com ela amarrou-lhe as mãos. Com o véu que cobria a cabeça prendeu-lhe os pés” (p15). E embora ele tentasse alcançá-la enquanto ela dormia, avançando em sua direção e rugindo como uma fera, ela não se intimidava. Para dominá-lo, usava a voz sem temor, com autoridade, proferindo comando tais como: “Cala-te, criatura lunática! E mais adiante, “Aquieta-te criatura débil e eu te darei água para beber” (p.. 16) e, assim, o selvagem acabava por obedecer-lhe, aquietando-se. Mesmo conseguido mantê-lo sob controle, Rebeca estava sempre vigilante porque imaginava que aquela criatura selvagem seria “capaz de matá-la enquanto dormisse” (p. 17).
Rebeca ocupava posição privilegiada em relação ao homem, situação um tanto incomum especialmente por tratar-se de uma história que tem como cenário o tempo antigo no qual a mulher não tinha grande valor. Pelos padrões convencionais da época, a mulher era quem precisava de um salvador, um homem que a protegesse do medo, dos perigos e dos assédios de outros homens. Contudo, foi ela quem salvou Natanael e, mesmo não tendo a força física de um homem, conseguiu dominá-lo. A superioridade que a favorecia era circunstancial, não era propositadamente estabelecida por ela. Ele precisava de ajuda porque estava gravemente ferido, mas era louco e selvagem como um animal, por isso ela precisava dominá-lo para proteger-se.
Na obra “Rebeca” os papéis se invertem no que diz respeito a história convencional na qual a mulher de alguma maneira é “salva” pelo homem, seja através do casamento ou numa situação de perigo. Portanto nessa história, a mulher é representada como sendo a figura salvadora. Vê-se aqui que a situação de privilégio e dominação recai sobre a mulher.
Nesse episodio, Rebeca não precisou matar, contudo, mataria se não tivesse outra alternativa, como acontece em outras passagens que ocorrem mais adiante nos capítulos quatro e dez, quando se encontra em situações nas quais seria maltratada, abusada, e provavelmente morta.
Depois de quarenta dias, os malfeitores que apedrejaram Natanael voltaram ao vale. Rebeca explicou seu plano para matá-los e só então libertou o louco. Ficou sozinha na fonte porque sabia que era para lá que os dois homens iriam a fim de beber água. Sentou-se fingindo-se de frágil e desamparada para que com isso os inimigos não a tivessem por ameaça e assim, pudessem ser atraídos por ela até onde Natanael estava escondido para atocaiá-los. Quando um dos homens a segurou pelos cabelos, ela fingindo chorar implorava pedindo piedade, então o “inimigo acreditou na sua fragilidade. Além disso, deixou-se fascinar por sua formosura. Consolou-a prometendo que não iria lhe fazer nenhum mal” (p.24)
Entre soluços disse que havia um homem morto entre as pedras e indicou o local. Então um deles foi até lá e foi morto por Natanael que rachou sua cabeça com uma pedra conforme narração do trecho a seguir:

Rebeca apontou um lugar distante e desatou novamente a chorar. O soldado afastou-se em direção as pedras altas, a fim de tentar enxergar o lugar onde o morto jazia. Nesse instante, o outro estendeu os braços e puxou a bela mulher para junto de si, a fim de que chorasse apoiada junto a seu peito. Ela, cautelosamente, retirou a faca que trazia escondida em seu bolso e cravou-a, várias vezes, nas costas do espia à altura de seu coração. A agilidade de Rebeca foi tamanha que o homem mal teve tempo de perceber o que havia acontecido. Equilibrou-se por alguns instantes, fitando-a atônito. Esboçou um sorriso como se estivesse elogiando-a pela sua coragem e valentia. Caiu morto sobre a viúva, derrubando-a no chão.
Ela esforçava-se para sair de baixo do morto, quando Natanael, que já havia rachado a cabeça do outro soldado inimigo, apressou-se em ajudá-la. Rolou o corpo do homem para o lado e a levantou do chão. Examinou-lhe as vestes ensangüentadas, procurando se certificar de que não estava ferida. Fitou o rosto da moabita muito admirado de sua coragem, fazendo-a notar que já não tinha o olhar alucinado. Estava em seu juízo perfeito. Com mãos fortes arrastou os soldados inimigos para um lugar distante para que fossem devorados pelas aves do céu.  Rebeca sentou-se junto às águas e lavou suas vestes (MORAES, 2000, p.24-25)

Apesar de não ser privilegiada pela força bruta, proveniente da estrutura biológica que favorece o corpo masculino, conforme trata Bourdieu (2002) em seus estudos sobre a dominação masculina, Rebeca compensava essa carência com habilidades adquiridas com planejamento e esperteza. Sabia aguardar o momento de agir, planejava o que deveria fazer e aproveitou a força masculina quando conquistou o louco como aliado. Dessa forma, ela conquistava seu espaço, mostrava que tinha valor, que era capaz de lutar para se defender e para conquistar seus objetivos. Não sendo dotada de força física, podia subjugar seu inimigo usando para isso certos protótipos atribuídos às mulheres com forma de enganar e enfraquecer o adversário. Acreditando em sua aparência de fragilidade e inferioridade, relaxavam com a vigilância e cuidado, e assim, mesmo tendo força física inferior ela prevalecia.
A partir de então o louco recuperou seu juízo, e evoluindo de sua condição de selvagem equiparou-se a Rebeca, contudo ainda assim, ela estava no comando porque arquitetava os planos que ele deveria executar. Um desses planos traçados por ela seria entrar no acampamento dos soldados que vigiavam o povo amonita para guerrear contra ele. Quando estivesse dormindo embriagados, eles os visitariam em suas tendas enquanto dormissem e matariam um a um, o máximo que pudessem. Natanael achando o plano arriscado, resiste e aconselha que ela volte para junto de seu povo. Mas ela não pode voltar porque o seu sogro a encontraria. Diante disso, declara que prefere morrer tentando atrasar o ataque dos assírios do que cair nas mãos de seu sogro. E novamente tenta convencê-lo explicando seu plano, como se percebe no trecho a seguir:

Invadiremos seu acampamento durante a noite, a mim não importa que me matem, estou disposta a morrer para ajudar meu povo. – Fitou Natanael com olhos penetrantes e o desafiou: – Se não tens coragem suficiente para enfrentar os inimigos, irei sozinha! 
Percebendo que não a faria mudar de idéia, iniciaram a jornada. Por três dias procuraram, até que, foram surpreendidos por dois soldados enquanto espiavam, à distância, o acampamento dos assírios. Natanael, para não ser morto por eles, bambeou em suas pernas e babou fingindo-se de louco. Mandou que Rebeca lhes dissesse que ele era seu irmão, doente de nascença. Eles acreditaram imediatamente, visto que estava maltrapilho e sua barba, unhas e cabelos estavam bastante crescidos.
– Tenha misericórdia de nós... – disse ela inclinando-se diante dos inimigos. – Sei que são dos exércitos dos assírios, seus espias foram apanhados pelos amonitas.  Sou moabita, mas estava no meio deles e sei tudo que planejam. Estão juntando os seus exércitos para virem ao vosso encontro. Poupe a minha vida e a de meu irmão e lhes direi como podem fazer para chegar até eles sem que sejam percebidos. Meu marido era amonita, porém morreu, como era pobre, me deixou desamparada no meio de seu povo. Sigo em busca de uns parentes distantes, tudo que me restou na vida foi esse irmão meu... louco de nascença.... pobrezinho... – lançou um olhar piedoso em direção a Natanael que fazia o que podia para aparentar ser realmente falto de juízo. – Ele segue-me onde quer que eu vá como se fosse um cão fiel...
Rebeca entregou-lhes o alforje, que carregava traspassado em seus ombros, para que visse que nada havia dentro dele além de um pouco de comida.  Sua faca e suas jóias, estavam escondidas debaixo de suas vestes.
– Leve-me até o príncipe de teu exército e a ele revelarei os segredos dos amonitas e indicarei um caminho por onde devem ir para atacá-los sem que percebam quando vierem eles a caminho (MORAES, 2000, p. 28-29).

Nesse trecho, a obra remete a um episódio bíblico escrito no primeiro livro de Samuel no qual Davi fingi-se de louco para escapar da morte. Por outro lado, esse mesmo episódio faz alusão à passagem bíblica no livro de Gênesis na qual Abraão temendo que os egípcios o matem para tomar sua esposa Sara que é muito bela, pede que ela lhe diga que é sua irmã.  
Quando levam Rebeca a presença do Marechal dos assírios, esse imediatamente encanta-se com sua beleza. Admirou-se também de como falava com desembaraço e por isso acreditou em tudo que ela dizia. Sentindo-se vitorioso por conhecer as estratégias do inimigo, proclamou uma festa e ofereceu banquete aos seus oficiais. Quando estava bastante alegre por causa do vinho mandou que um dos seus chefes persuadisse a estrangeira a torna-se sua concubina. Ter concubinas era costume dos antigos especialmente daqueles que tinham riqueza e que podiam sustentá-las com presentes. Eram uma espécie de segunda esposa ou amante com finalidade de proporcionar-lhes sexo e também de aumentar o número de seus filhos (Coleman, 1991). Entre os assírios era motivo de grande vergonha que uma mulher se recusasse a esse convite, caso o fizesse para não ser desmoralizado era comum que fosse possuída à força (MORAES, 2000). As passagens a seguir mostram como Rebeca resolveu reagir diante do convite:

Ao ser informada do desejo de Bartos, Rebeca lançou um olhar discreto em direção a Natanael e ele lhe acenou levemente a cabeça, dando-lhe sinal de que deveria aceitar. Dessa forma, fingindo-se estar honrada com a decisão do marechal, prontificou-se de bom grado a ir vê-lo em sua tenda. Natanael a seguia troncho, coxeando sobre as pernas, ela dirigia-lhe a palavra, de vez em quando, como se falasse com um cão de sua casa. Ao chegar diante da porta do aposento do maioral dos assírios, mandou que a esperasse do lado de fora. E assim ele fez [...]  Procurando encantá-lo com palavras agradáveis, Rebeca fazia elogios aos requintes de sua tenda, demonstrando grande admiração, como se nunca tivesse visto antes tão deslumbrantes vasos de ouro e prata [...] Falava sem parar, enquanto ele se embriagava com o muito vinho que bebia. Natanael entrava, vez por outra, no aposento, fazendo coisas engraçadas e Bartos dava ruidosas gargalhadas. A viúva formosa fingia enxotá-lo e com isso ganhava tempo, visto que o maioral dos assírios embriagava-se e mal podia manter-se em pé sobre as próprias pernas (MORAES, 2000, p. 30-31).

Quando todos os soldados se recolheram em suas tendas embriagados pelo vinho, Rebeca chamou Natanael, então ele matou o Marechal usando para isso a própria espada do valente. Rebeca permaneceu na tenda ao lado do morto, enquanto Natanael sorrateiramente percorria as tendas dos oficiais e os matava com lança que levava consigo. Os que escaparam da morte, na manhã seguinte espalharam a notícia de que foram visitados por muitos homens do exercito dos amonitas enquanto dormiam. Desorientados, apavorados e enfraquecidos pela morte de seu Marechal e oficiais, se desentendiam e assim fugiram espalhando-se pelo vale.
Com isso, os papéis se invertem novamente, visto que sendo mulher e tendo somente um único aliado consigo, Rebeca consegue, usando a astúcia, inteligência e alguns artifícios femininos enfraquecer a vigilância e a ação do exército inimigo, fazendo com que esse ao invés de avançar para atacar a aldeia de um povo despreparado para guerra, batesse em retirada. Com isso, a trama mostra que muitas vezes o planejamento, a prudência e a inteligência fazem triunfar muito mais que a força bruta. E que as mulheres são capazes de fazer valer sua vontade e conquistar seus horizontes tirando proveito até mesmo daquilo que aparentemente se constituí como “fraqueza”.
No capitulo nove, Rebeca passa por uma situação de preconceito. Natanael e os demais homens da aldeia do pai de Rebeca, onde agora vive com seu marido e seu filho, são convocados para irem lutar na guerra.
A aldeia de Eliacim era pequena e os que ficaram eram velhos, mulheres e crianças. Vendo que os inimigos avançavam em direção a aldeia, Rebeca juntou o povo e disse que para que não morressem todos, as mulheres que fossem mães deveriam fugir para escaparem com suas crianças pequenas até que os inimigos tivessem passado pela aldeia. Desse modo, como ela tinha um filho de colo que ainda mamava, deveria partir com aqueles que estavam destinados a viver. Samir, um adolescente que, por ser corajoso, desejava comandar o ataque aos inimigos,  queria que ela fosse porque não lhe agradava o fato de estar sendo liderado por uma mulher. Assim sendo, de um lado as mulheres diziam: “Rebeca deve seguir conosco!”, então o menino querendo livra-se dela esbravejava: “Acho melhor que sigas com os covardes [...] Não precisamos dos conselhos de uma mulher para vencer os inimigos” (p.56).
Rebeca estava diante de um impasse porque ela sabia que os dois lados precisam de um líder, e que ela era esse líder em quem eles confiavam, sua simples presença trazia esperança para aquela gente frágil e assustada, conforme narra o trecho a seguir:

O povo em derredor ouvia em silêncio. Seus semblantes estavam turbados. Não havia esperança para eles, os inimigos não teriam compaixão de nenhum deles. Deixariam que vivessem algumas das mulheres mais jovens, porém o restante passaria pelo fio de suas espadas. Todos sabiam que seria desse modo. E o coração de Rebeca agitou-se em seu íntimo pelos que consentiram ficar. Sabia que desejavam que permanecesse com eles para lhes dizer o que deveriam fazer quando os assírios os atacassem.
– Apressa-te!... – disse Rebeca, pondo o seu filho nos braços da outra jovem moabita. – Cuidarás de teu filho e do meu de igual modo. Se formos todos, eles desconfiarão que fugimos, nos seguirão e rapidamente nos alcançarão por sermos muitos.
Sara abraçou Rebeca e chorou. Em seguida, partiram levando o menino Daniel e as outras crianças da aldeia.
– Não sei porque ficastes!... – gritou Samir. – Não precisamos dos teus conselhos... Agora somos menos do que éramos antes, tu mandastes embora os rapazinhos que podiam fazer emboscadas e enfrentar com pedras os nossos inimigos... Não sei porque devemos ouvir a voz de uma mulher.
– Devemos ouvi-la, porque seus conselhos são sábios! – disse um ancião que estava assentado no pátio de fronte a sua casa. – Os que se foram escaparão e estarão escondidos até que acabe a peleja. Habitarão pelos montes e cavernas. Um dia retornarão e começarão uma nova aldeia moabita. E não findará a nossa descendência sobre a terra (MORAES, 2000, p.56).

Natanael e os outros que foram com ele para guerra retornam e encontram “suas casas queimadas e muitos mortos espalhados pelo chão” (p.59). Ao enterrarem os mortos percebem que não havia crianças pequenas entre eles, então entendem que alguns escaparam. Sai a procurá-los, e quando os encontra, fica sabendo que Rebeca não estava entre eles porque tinha sido levada por um soldado que se encantou com sua beleza. Parte em busca da esposa, contudo como estava gravemente ferido e torturado pelas dores que sentia, agonizava chamando pela morte. Até que entre delírios vê Rebeca surgindo com o vestido ensanguentado sem seu véu sobre a sua cabeça. Dessa forma, mais uma vez, Rebeca tem a missão de salvá-lo da morte. Ela rasga o seu vestido e com os pedaços ata suas feridas. Tão logo ele melhora, conversam sobre o que aconteceu, ele desejava saber que mal lhe fez o maldito assírio, ela então,

Retirou a faca que havia colocado em sua cinta e a exibiu ao marido triunfante.
– Nenhum mal me fez o maldito inimigo porque esperei quieta que ele viesse sobre mim e enterrei em seu ventre esta faca. Fugi da presença do ímpio e fiquei escondida a espreitá-lo. Quando vi que estava morto, voltei para buscar o que me pertencia e, vendo que não necessitava mais do seu cavalo, o trouxe comigo. As aves do céu comem as carnes do maldito nesta hora.
– E, onde está o cavalo que trouxestes? – olhou os arredores.
Na verdade, o cavalo que estava junto ao ribeiro fora trazido por Rebeca. Como agonizava quando chegou junto às águas, Natanael não prendeu seu próprio cavalo e ele se foi, mas não estava distante. Saíram à sua procura e não tardaram a encontrá-lo (MORAES, 2000, p.62).

De acordo com algumas passagens bíblicas era costume dos guerreiros saquear os pertences dos inimigos que eram vencidos. Dessa forma, Rebeca resolveu se utilizar desse costume, tomando para si o cavalo que foi do assírio que ela matou. Nessa passagem, mais uma vez ela utiliza como estrangeira a aparência de submissão e fragilidade para enfraquecer o inimigo. E assim sendo, novamente foi capaz de lutar e se defender sem a ajuda de um protetor do sexo masculino. Outra situação recorrente que a coloca em situação de dominação, é o fato de mais uma vez Natanael está gravemente ferido, beirando a morte, desse modo, novamente ela surge para resgatá-lo. Uma vez que ele estava gravemente ferido, perdendo sangue e delirando moribundo enquanto vagava a sua procura por lugares inabitados, terminaria morrendo se ela não o tivesse encontrado.
No capítulo onze, depois de sessenta dias, eles fazem a jornada de volta para casa. “Subiram em um monte bem próximo de onde estavam acampados. Pararam os cavalos lado a lado procurando enxergar o acampamento de sua gente” (p.64). O fato de eles voltarem lado a lado cada um em seu cavalo é significativo visto que se Rebeca não tivesse vencido o assírio e se apropriado do seu cavalo, ela voltaria trazida pelo marido, o que a relegaria a uma posição secundária. Estando lado a lado, indica uma condição de igualdade. E assim viveram por toda sua vida. Quando já velho Natanael morreu, seu filho primogênito Elom tornou-se o maioral da aldeia, porém “nenhuma decisão era tomada sem que se ouvisse também os conselhos de Rebeca” (p.66). E quando ela passeava pela aldeia as pessoas saiam às portas para vê-la, como se ela fosse uma rainha. “Embora fosse uma mulher, recebia as honras que eram dedicadas aos anciões do povo. Ela era amada, respeitada e admirada por todos” (p.66).  Seus feitos eram divulgados entre as gerações e se espalhavam pelas aldeias vizinhas. E pelo resto de seus dias Rebeca foi tratada com honras e privilégio. Sua voz era ouvida como era ouvida a voz dos anciões que eram homens já velhos com vasta experiência de vida para dar conselhos. “E assim, o lugar habitado pelos descendentes do guerreiro Natanael passou a ser conhecido até os dias de hoje como sendo ‘A aldeia de Rebeca’” (p.66). 
 O fato da aldeia onde moravam ser conhecida pelo nome de Rebeca, mostra que ela realmente era pessoa de prestígio, visto que os lugares geralmente eram conhecidos por nome de homens. Uma aldeia poderia ser conhecida pelo nome de mulher no caso de não haver a presença do pai, de um marido ou de um irmão mais velho que fosse influente.
Segundo Bourdieu (2002), o homem exerce dominação porque é favorecido pelos privilégios que procedem de seu corpo, ou seja, domina porque sua natureza biológica lhe favorece para isso. Com base nesse pensamento, o discurso moralista procura encontrar no corpo feminino a justificativa para enquadrar a mulher em regras e normas que limitam seu comportamento. Assim, de modo geral as mulheres são vistas de acordo com certos estereótipos como: fragilidade, insegurança, inferioridade e dependência dentre outros. Entretanto, mesmo sendo mulher e existindo num tempo em que a mulher viva debaixo da dominação masculina e comportava-se com total submissão, Rebeca foge as esses padrões. Seu corpo de mulher não limitava sua atuação. Assim sendo para sobreviver num contexto de guerras, ela era levada a realizar feitos que não eram condizente com comportamento feminino. Dessa forma, ela fazia sempre mais além daquilo que se esperava de uma mulher.

Considerações finais

Embora a história de Rebeca se passe em um tempo muito antigo, em um período em que havia muitas restrições imposta à mulher no que refere a sua atuação social e valor pessoal, a protagonista em toda sua trajetória foge a esses padrões que reduzem a mulher a uma condição de inferioridade.      
O enredo mostra a atuação de uma heroína que enfrenta e vence bravamente qualquer perigo, e para isso não precisa necessariamente ter ao seu lado uma figura masculina para protegê-la e defendê-la. Ela faz a sua própria defesa, lutando, ferido e matando quando se faz necessário. Não se enquadrado, portanto, no estereótipo da mulher frágil, indefesa, inferior. Ao contrário disso, ela usa a sua inteligência que serve de escudo e arma, e mesmo sem ser dotada com a mesma força física de um homem, ela consegue subjugar o inimigo. Com isso, não perde sua feminilidade porque mata para sobreviver, mata porque vive entre guerras e precisa proteger a si mesma daqueles que investem contra ela para fazer o mal, equiparando-se em ações à figura masculina do herói guerreiro, personagem que, em tempos antigos, tinha a simpatia do povo. 
Portanto, na obra de Margarete Solange a figura feminina é retratada não sob a perspectiva da insignificância ou inferioridade atribuída as mulheres nos tempo em que o patriarcalismo limitava sua atuação ao espaço doméstico. Ao contrário disso, Rebeca ocupa posição de heroína, tem vontade própria, a sua voz é ouvida, o que a faz diferente dos padrões estabelecidos de submissão e dependência. Aproveita-se da imagem de fragilidade e carência com a qual a mulher é vista para tirar proveito das situações e enfraquecer os inimigos e vencê-los. Enfim, Rebeca é uma mulher que vai a luta, peleja e mata para não ser abusada ou relegada a posição de concubina de homens aos quais desprezava e não desejava ter por marido ou amante.

Referências
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. São Paulo, Editora Nova Fronteira: 1949.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Künher. 2 ed. Rio de Janeiro: Mertrand Brasil, 2002.
COLEMAN, William. Manual dos tempos e costumes Bíblicos. Belo Horizonte, Betânia, 1991
Moraes, Margarete Solange. Rebeca. Mossoró, Santos, 2000.
FOLLADOR, Kellen Jacobsen. A mulher na visão do patriarcado brasileiro: uma herança ocidental. Revista fato&versões, n.2 v.1, p. 3-16, 2009. Disponível em <www.catolicaonline.com.br/fatoeversoes ISSN 1983-1293> acesso em, 07 set de 2013
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In Bonicci, Thomas & ZOLIN, Lúcia Osana (Org). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3 ed. Maringa: Eduem, 2009, p. 217-242.

Sobre a autora 
Margarete Solange, 
Escritora brasileira do Rio Grande do Norte, nascida em Natal, é autora de poesias, crônicas, contos e romances.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Margarete_Solange



Sobre os autores do Trabalho
Jozadaque Pereira e Jucymário Lima,
Formados em Letras - com habilitação em
Língua Espanhola.
Algumas partes do trabalho foram suprimidas nesta exposição,
Para ler o trabalho completo, acesse
http://anaisdoceclit.blogspot.com.br/





Um comentário:

  1. Massa o Livro Rebeca. Se naquele tempo as mulheres já eram guerreiras, imagine agora, tem que guerrear. Ficou bom, o trabalho da dupla, parabéns Jucymário e Jozadaque.

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