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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Amigas

conto de Margarete Solange

De todas as maneiras fazemos mal uns aos outros. Querendo ou mesmo sem querer. Por vezes, temos nos lábios uma lâmina afiada e nem percebemos, temos unicamente consciência de que amamos e demonstramos esse tão grande amor através de um sincero beijo.
Durante muito tempo esses acontecimentos ficaram apagados de minha memória. Não sei como explicar, eles sumiram ou se calaram simplesmente. As pessoas não falam sobre o assunto e, desde então, passaram a me tratar como um ser muito frágil. Eu gostaria de saber o que pensam sobre essa história, que julgamento fazem de mim. Mas acho que ninguém sabe sobre o nosso trato a respeito daquele vestido, porque a minha amiga jamais contou, e eu, depois de tudo que aconteceu, não tive coragem de revelar.
Passaram-se anos sem que as cenas do passado viessem me incomodar; porém agora, como num grito, o silêncio foi rasgado, então surgiram em minha memória imagens tão reais que parecem a exibição de um filme num cenário vivo, no qual os personagens atuam em derredor de mim. Melhor dizendo, parece um sonho, no qual eu participo, mesmo estando bem acordada. O que vejo são lembranças, lembranças que ressuscitaram... Não sei para que elas ressurgiram assim, de repente, depois de tanto tempo de silêncio contido.
            Éramos amigas deste os tempos de nossa infância, inseparáveis. Nem mesmo quando nos apaixonamos pelo mesmo rapaz nossa amizade foi abalada. O cretino fingia-se interessado por nós para nos manter apaixonadas por ele. Logo que percebemos o seu jogo malvado, unimos forças para menosprezá-lo.
Algumas amigas, talvez por inveja de nossa amizade sincera, tentaram nos separar; porém, diante das adversidades, nossa amizade se fortalecia. Foram bons tempos.
Estudos, pesquisas e viagens sempre foram minhas grandes paixões. Ela queria ser modelo e atriz. Era linda: alta, magra, cabelos lisos e claros, olhos grandes, azuis, cheios de vida. Fez cursos e iniciou a carreira de modelo. Atuou em alguns comerciais, numa emissora local, mas não teve êxito nessa profissão porque não conseguiu manter a magreza esperada por muito tempo. A princípio eu percebia que ela estava infeliz, afinal ser modelo era seu grande sonho desde criança. Com o tempo, tornou-se alegre novamente, piadista, fazia gracinhas e proclamava-se feliz. Dizia que comer era uma de suas grandes paixões. Ser feliz vivendo o presente era seu lema, o passado e o futuro não importavam.
Ela comia com exagero, especialmente se estivesse em companhia de amigos e alguém lhe cobrasse os tempos em que era exageradamente magra e atuava como modelo. Eu tentava convencê-la a controlar-se. Falava-lhe sobre os perigos da obesidade e da importância de uma alimentação saudável. Sempre lhe mostrava pesquisas médicas e a fazia ler novidades sobre o assunto. Algumas vezes, ela me ouvia e acatava os meus conselhos; noutras, não me levava a sério. Vez por outra iniciava uma dieta, mas a sua força de vontade era vencida por qualquer prato delicioso que surgisse em sua frente.
A minha amiga teve um namorado que a ajudou a emagrecer, e manteve-se no peso ideal por um determinado tempo. Tão logo esse relacionamento terminou, ela, como que por pirraça ou vingança, desatou a engordar assustadoramente. Depois que esqueceu o rapaz, recuperou a autoestima e passou a preocupar-se com a boa forma. Assim, à custa de dieta e exercícios físicos, conseguiu manter-se no peso ideal durante um certo tempo.
Recordo-me de uma vez em que se encantou com um vestido que eu estava usando. Tentando motivá-la a perder peso, disse que lhe daria o vestido se ela emagrecesse. Nessa época, ela ainda não estava tão acima do peso. O incentivo deu certo, e em poucos meses ela estava magra, radiante exibindo-se, sentindo-se maravilhosa dentro do desejado vestido.
Anos depois, na época em que eu estava estudando e morando em Portugal, ela visitou-me e esteve comigo alguns dias. Ao passar diante de uma vitrine, encantou-se com um vestido belíssimo. Entramos na loja com propósito de verificar se havia um modelo semelhante num tamanho maior. Não havia. Além disso, soubemos que o vestido era caríssimo. Mesmo assim, eu o provei, a pedido dela. Os seus olhos se iluminaram. Ela desejava muito aquele vestido. Mas, mesmo que tivesse outro parecido, não seria a mesma coisa, o vestido era especialmente belo: perfeito!
– Compro pra você – disse-lhe num impulso.
– Como assim? – estranhou. – É muito caro!
– Não importa, compro!... E lhe dou de presente se você prometer emagrecer.
Olhou-me pensativa. Teria que emagrecer uns vinte quilos para caber naquele vestido.
– Não... é um vestido muito caro...
– Compro o vestido, se você prometer que vai emagrecer...
– Você não tem esse dinheiro... Não posso aceitar.
– Dou um jeito.
Insisti. Ela, olhando cada detalhe do vestido, que realçava as curvas de meu corpo, encheu-se de entusiasmo.
– Vou usá-lo no Natal! – proclamou decidida, batendo palmas e levando as mãos ao rosto alegremente, um tanto infantil.
– No Natal?!
Achei que o Natal estava muito próximo, mas não quis desestimulá-la.
– Vou usá-lo no Natal, você vai ver.
Consegui que me reservassem o vestido até o final do mês e, assim sendo, a peça foi retirada da vitrine. Ela animou-se. Iniciou a dieta naquele mesmo dia. Pedi-lhe que tivesse juízo e que procurasse um acompanhamento com um especialista. Ela me garantiu que não faria nenhuma loucura para emagrecer.
Umas duas semanas depois, telefonou-me dizendo que já estava mais magra e que eu tratasse de comprar o vestido. Contagiada pela sua empolgação, comprei-o imediatamente. Desde então, passei alguns apertos financeiros; contudo, estava certa de que o sacrifício valeria a pena.
Escreveu-me dando notícias e perguntando-me pelo seu presente. Contei que o vestido já estava comigo e mandei-lhe uma foto comprovando a veracidade de minhas palavras.
Respondeu-me expressando a sua felicidade e a sua ansiedade para vesti-lo. Novamente afirmou que iria usá-lo no Natal. Quando lhe perguntava quantos quilos já havia emagrecido, ela não me dava resposta. Dizia-me tão somente que era surpresa.
E, dessa forma, nos correspondemos durante oito meses, até que, finalmente, eu voltei à minha pátria trazendo comigo o rico presente.
Não avisei que estava vindo porque pretendia fazer uma surpresa a todos. Logo que cheguei, soube que minha amiga estava hospitalizada. A notícia não só me surpreendeu, chocou-me profundamente. Ela estava muito mal, entre a vida e a morte.
Sem acreditar ou sem aceitar o que estava acontecendo, dirigi-me ao hospital levando o presente comigo. Mesmo ciente da gravidade do caso, eu ainda estava cheia de esperanças. Apesar da situação dolorosa, a família de minha amiga expressou a sua alegria ao ver-me de volta.
Como não era permitido que as visitas entrassem todas juntas, mas somente uma de cada vez, elegeram-me para ser a primeira a entrar e permitiram que eu ficasse um pouco mais. Imaginaram que isso poderia trazer-lhe grande emoção que resultasse em alguma melhora.
Se nosso encontro não estivesse acontecendo numa situação como aquela, eu diria que, ao vê-la, senti uma alegria indizível: ela conseguira emagrecer conforme prometera. Repentinamente essa emoção transformou-se em pavor. Tomada pelo pânico, não sabia o que fazer ou dizer.
Imaginando que ela me ouvia, iniciei gracejando, evocando passagens de nossa infância e adolescência, como se estivéssemos interagindo numa animada conversação. Acho que ela me ouvia, mas os seus olhos estavam fechados e ela não movia nenhuma parte do corpo, apenas respirava. Acho que algum aparelho a ajudava a respirar... Não lembro, não consigo lembrar os detalhes daquele encontro... Tento, mas algumas partes se mostram vazias.
Imagino que falei com ela, durante algum tempo, chorando, sorrindo, cantando nossas canções favoritas. Por fim, lembrei-me do vestido. Saber que o tão desejado presente estava ali comigo talvez fosse uma emoção capaz de trazê-la de volta do coma. Nesse momento, uma enfermeira bateu à porta e entrou para dizer que o tempo da visita havia acabado.
Ao chegar diante da porta, desisti de sair. Girei a chave na fechadura e voltei para junto de minha amiga. Eu não podia abandoná-la naquele momento. Mostrei-lhe o vestido. Segurei-lhe a mão e pedi-lhe um sinal. Acho que ela me deu um sinal. Não me lembro como foi isso, mas lembro que aconteceu algo que me deu esperanças.
Estava cabisbaixa, tentando colocar o vestido de volta na bolsa, então, de repente ouvi a sua voz. Acho que foi assim... Ela sentou-se na cama e pediu-me o presente. Não lembro ao certo, mas lembro-me de que, com grande dificuldade, eu tentava vesti-la. Eu desejava tanto vê-la usando aquele vestido e, sobretudo, eu queria muito vê-la feliz.
Apressava-me na execução de minha tarefa, porque pessoas batiam à porta me pedindo para abri-la. Em seguida, não me lembro de nada mais. Disseram-me que cai e sofri uma forte pancada que me abriu a cabeça e que, durante alguns dias, fiquei inconsciente, internada numa clínica que ficava ao lado do hospital onde a minha amiga estava.
Três dias depois, ela se foi, bela e simples. Era noite de Natal, mas ela não estava usando o vestido de festa que eu lhe dei. 



Fotografia de Felipe Galdino

.Margarete Solange,Contos Reunidos,
Sarau das Letras,2014, p. 150-155



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