Conto de Margarete Solange
Recomendo aos maridos que não leiam
este conto para não correrem o risco de descobrir que existe um outro homem na
vida de suas mulheres. Até pensei em intitulá-lo: “Proibido para Homens”; no
entanto, se fizesse isso, a coisa seria muito pior, pois aguçaria ainda mais a
curiosidade masculina. Bom, se teimarem em lê-lo, espero que não resolvam dar a
revanche, uma vez que, se o fizerem, nós mulheres estaremos em maus lençóis.
Com certeza nos lançariam em rosto algo como as palavras bíblicas que dizem que
não se deve apontar o argueiro dos olhos nos outros, quando uma enorme trave nos impede de enxergar com
nitidez.
Esta narrativa
baseia-se na mistura da conversa de várias mulheres que, juntas num feriado
prolongado, observavam os seus maridos jogando futebol na beira da praia, ao
mesmo tempo em que comentavam sobre o quanto as coisas haviam mudado desde os
primeiros tempos de casadas até o presente.
Veio-me a ideia de juntar tudo
numa história só. É divertido exagerar uma vez ou outra. Aprontei o conto numa
única noite enquanto, pacientemente, aguardava a chegada do sono. No dia
seguinte, achando que tivera uma brilhante ideia, fui lê-lo para o meu marido
ouvir. Resultado: ele detestou. Disse-me todo ressentido:
– Todo mundo vai pensar que a
narradora desse conto é você e que o marido sou eu.
Com uma falsa ingenuidade
indaguei:
– Será?
A verdade é que os leitores sempre
acreditam que o eu-narrador e o autor são a mesma pessoa. Fazer o quê? Afinal,
escrever usando a primeira pessoa torna a narrativa muito mais convincente.
Acontece também que, algumas vezes, a história é realmente autobiográfica. E
mesmo que não seja, creio que há sempre um pouco do autor presente na trama e
nos personagens...
Bom, agora sem mais rodeios, vamos
ao conto.
Era tarde. Todos na casa dormiam.
Do lado de fora, o vento forte açoitava os coqueiros, trazia aos meus ouvidos o
envolvente barulho do mar. O meu marido, ao meu lado, roncava alto. Isso não me
incomodava nem um pouco. Acho até que devo roncar também. Não tenho certeza,
porque nunca me observei dormindo e, pelo menos sobre isso, ele jamais se
queixou. Talvez até porque sempre adormece antes de mim.
Sentei-me na cama e acendi a
lanterna com cuidado, para não perturbá-lo. No instante em que acidentalmente a
luz focou-lhe o rosto, pus-me a observá-lo atentamente.
– Céus! Não foi com este homem que
me casei! – concluí surpresa. – O que este homem está fazendo deitado em minha
cama vestindo o pijama do meu marido?
Os poucos cabelos que lhe restavam
estavam bem curtos e bastante grisalhos. Além disso, não usava bigode. O meu
marido sempre usou bigode. Essa particularidade dava-lhe um ar mais sério,
másculo, enfim, um charme a mais.
Instantaneamente passei a
relembrar cenas dos últimos anos. Tudo ficou bem confuso em minha mente.
Afinal, quem era aquele estranho que lentamente foi assumindo o lugar do meu
marido?
Quando casamos, ele gostava de
minha companhia. Era terno, compreensivo. Dividia comigo certas tarefas
domésticas só para não me ver presa na cozinha por muito tempo. Contava piadas
engraçadas para me fazer rir e sempre comentava comigo assuntos do seu dia a
dia de trabalho.
Lembro-me
que, nos últimos dias, o estranho queixava-se de que eu não era a mesma com
ele. Dizia que eu parecia não amá-lo mais. Agora entendo: era a estranheza de
beijar um outro homem. O homem com quem casei era bem diferente. Eu sabia que
algo estava errado, eu sentia isso; no entanto, não conseguia compreender a
essência do problema. Todavia, no momento em que
a luz da lanterna focou o rosto desse homem sem bigode, tudo ficou tão
obvio.
As vozes dos dois até parecem
iguais, se bem que, a do estranho que está ocupando o lugar do meu marido é um
tanto irritadiça. Se algo não está indo bem, ele argumenta, até me convencer,
que fui eu quem falhou em algum ponto, que sou responsável direta ou
indiretamente por aquilo que deu errado. Consciente ou inconscientemente, ele
procura fazer essa transferência de culpa. Tentei muitas vezes alertá-lo sobre
isso, porém é quase impossível convencê-lo de seus erros.
Por que pedir desculpas é tarefa
tão difícil para os homens? Com o passar do tempo, eles não nos elogiam, tampouco
nos agradecem mais; somente cobram, como se tivéssemos para com eles uma eterna
dívida. Mil piadinhas são feitas em defesa da classe masculina, ridicularizando
as mulheres casadas: falamos demais, reclamamos demais, somos chatas, feias,
desajeitadas etc, etc, etc. A responsabilidade de criar filhos quase sempre
pesa somente sobre nossos ombros, enquanto os pobrezinhos carentes têm
necessidade de consolar-se nos braços de uma outra qualquer. E nós não temos
também necessidade de ser amadas, admiradas e compreendidas?
Durante anos e anos eu sempre
achei que ele tinha razão: era eu quem precisava mudar para vivermos melhor;
era eu quem estava distante dos padrões de mulher virtuosa. Ultimamente
entramos em atrito por qualquer bobagem, mas no início não era assim.
Encaixávamos tão bem nossos sentimentos, que eram uma combinação de amor,
respeito, admiração e amizade. A verdade é que a harmonia do casamento depende
muitíssimo das duas metades, o respeito e companheirismo entre marido e mulher
são fundamentais para uma união saudável e duradoura. Não sei por que sentimentos
tão agradáveis perderam o brilho, a cor e a fragrância.
Procuro lembrar, mas não sei ao
certo dizer, quando foi que esse homem começou a dividir comigo a mesma cama. E
o homem com quem casei, onde está? Refiro-me àquele que me olhava com olhos
apaixonados, que fazia o meu coração acelerar sempre que gentilmente segurava
minha mão e aproximava seus lábios dos meus.
Agora estou eu ao lado de outro
homem: mais velho, gordo, barrigudo, meio careca e de cabelos brancos. Aprecio
homens maduros, e quanto aos cabelos grisalhos até os considero um charme
masculino; quanto à barriga, essa também não me causa espanto. Enfim, nenhuma
dessas coisas me incomodaria se interiormente ele fosse igual ao homem com quem
casei há anos.
Não sei explicar como isso
aconteceu. O que sei é que nesse momento um outro homem está no lugar do meu
marido, usando seus pijamas.
E agora, o que faço? Sei que, para
alguns, essa troca pode até passar despercebida, mas para mim ela é tão nítida.
O meu marido tinha bigode, não usava óculos e tinha um jeito terno de me
tratar. Como amantes, nos entendíamos muito bem. Todavia, não era só como
amante que ele me queria. Éramos amigos, conversávamos sobre todo e qualquer
assunto. Apreciávamos realmente a companhia um do outro. Quando saíamos às
compras, andávamos lado a lado. Eu apressava um pouco o meu passo, e ele
retardava o seu. Fazíamos tantos planos juntos! Certas situações embaraçosas
até nos divertiam. Comemorávamos juntos nossas conquistas e refazíamos nossos
planos, buscando aprender com nossos fracassos. Acertamos e erramos juntos
tantas vezes! Por que será que esse meu marido se foi e deixou outro em seu lugar?
Faz algum tempo que me levantei,
uns trinta minutos, talvez. Peguei o meu bloquinho de anotações, lápis e, com auxílio
de minha eficaz lanterna, estou escrevendo as palavras que você está lendo
agora. Precisava escrevê-las, afinal, é madrugada e não tenho, no momento, com
quem desabafar sobre essa questão. As amigas com quem conversava na tarde de
ontem se foram com os seus maridos antes do anoitecer.
Repentinamente me veio à cabeça
uma ideia meio tonta: e se amanhã eu telefonar para as minhas amigas e todas
elas me confidenciarem que essa mesma coisa aconteceu com elas? Que descobriram
assim, de repente, que seus maridos também foram trocados por outros bem
diferentes dos originais?
Neste
instante, ouvi um ronco comprido e alto. Voltei-me feliz em direção ao leito de
casal de nossa casa de praia. Senti-me contente porque reconhecia muito bem
aquela maneira desastrada de roncar. Acreditei que provinha do homem com quem
casei. Repousei os olhos sobre o estranho que dormia profundamente.
Exteriormente, até se parecia em algumas coisas com o meu marido; contudo,
apesar das semelhanças, não era o mesmo. A esse novo homem, que dorme aconchegado
sob nossos lençóis, faltam ouvidos e tempo para me escutar. Falta romantismo, e
sobram queixas e teimosias. O roncado que eu ouço é o mesmo, mas o olhar
apaixonado do antigo, esse novo homem não consegue imitar. E eu não sei o que
fazer para trazer de volta o outro homem – o homem que eu amava.
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Obra premiada no concurso literário
escritor Norte-riograndense:
Projeto Rota Batida III.
Fundação Mossoroense
* * *
É bárbaro mesmo,já o li várias vezes no livro "Ninguém é Feliz sem Problemas",Porém cada vez que leio morro de rir,o homem descrito é muito parecido com alguém que conheço ñ fisicamente,suas atitudes sim. Q/ cabeça maravilhosa da escritora Margarete,Acho q/ toda mulher já pensou assim,eu já...Bem bolado este conto,acho q/ os homens devem ler sim,só assim eles procurarão ser o mesmo homem sempre p/ gente ñ ficar buscando-o sem saber onde o cabra foi parar.Desculpa tá marido de Marina Bravia.Amo este conto.
ResponderExcluirkkkkkkkkkkkk a crônica de Fernando Veríssimo é hilária e o conto da autora é bem realista, ainda bem que estou casada com o mesmo homem desde o começo.
ResponderExcluirLegal demais o conto. Seria bom que Fernando Veríssimo tbm pudesse le-la. Espero qundo casar meu marido seja o mesmo sempre!
ResponderExcluirÈ bem egal essa resposta ao Fernando, adorei Margareth e suas palavras otimas e engraçadas...
ResponderExcluirQuero ler Ninguem é feliz sem problemas...Como eu faço?
Olá, Raquelzinha, vamos entrar em contato para a gente combinar sobre o livro Ninguém é Feliz sem Problemas, ok? preciso saber como posso te encontrar.
ResponderExcluirjá li esse conto uma vez e achei magnífico. Realmente se encaixa bem com nossa realidade, seria bom que os maridos lessem, pra voltar atrás e ser como eram antes. Fazer uma analise e voltar a ajudar a gente. E deixar de fazer piadinhas com a gente. Vamos fazer também piadinhas com eles. kkkkkkkkkkkkkkk
ResponderExcluirO artigo do Veríssimo, na minha opinião, é apenas uma caricaturara do lado exigente, falador, consumista etc., das mulheres. É claro que ele poderia ter falado das qualidades: batalhadora, amável, preocupada com a família etc, etc. Creio que escreveu isso só pra descontrair. Quanto ao conto o outro homem, concordo que quando se tem mais de 20 anos de casados, em algumas ocasiões, podem passar desabercebidos alguns detalhes que antes eram devidamente observados. Mas não acho que a transformação chega a tanto. É que com o passar do tempo, parece que damos mais atenção aos defeitos do que das virtudes do outro, quando deveria ser o contrário.
ResponderExcluirOtimo conto, adorei e concordo plenamente...
ResponderExcluirseria otimo se os homens continuassem os mesmos desde a primeira vez em que o conhecemos... Mais na verdade não é assim, todos mudam, por mais que digam que nao! mais mudam sim, é, que pena...Mais mesmo assim nós mulheres continuamos amando...
Ai que conto triste e lindo ao mesmo tempo... ^^
ResponderExcluirEu tenho medo de quando casar meu marido ficar assim....
Concordo com Layse, todos mudamos... Tem épocas que eu fico vê o outro homem... Só que no caso eu sou outra mulher... O.o
Estranho...
Sabe gentii, os maridos sempre reclamam desse conto, ficam ofendidos,não se identificam, mas com a crônica de Verissimo "Bom Marido" dão boas gargalhadas, vê se pode?! A autora Margarete tem também um outro conto no qual ela inverte as piadinhas que se fazem com as sogras. Leiam seu Conto "Sogras" deve estar postado nos arquivos deste blog.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOi, gentiii Fashion desse bloguinho, procurei o conto "Sogras" para botar o link dele aqui, mas não achei. Bom, o conto é muito divertido e faz parte do Livro Ninguém é Feliz sem Problemas da autora Margarete, acho que seria interessante postá-lo aqui no blog pra quem quiser ler. Que tal minha ideia?!
ResponderExcluirPois é, Sr Jorge, nós mulheres pensamos do mesmo modo que o senhor pensa, só que invertendo as obras, ou seja, achamos que o “Conto o Homem” é pra divertir a mulherada, e que a caricatura dos maridos ficou bem legal. Já na crônica “Bom marido” a caricatura que Veríssimo faz das mulheres, achamos que não é pra tanto. (hahaha) Que acham meninas, quem concorda com minha opinião?
ResponderExcluirEu também concordo. A opinião das mulheres está mais parecida com a verdade sobre os homens.
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