Conto de Margarete Solange
1984.
Estava indo fazer uma reportagem numa cidadezinha chamada João Câmara, mais
conhecida pelos moradores do lugar como “Baixa Verde”. Eu iria acompanhada de
um fotógrafo que era novato em nosso jornal. Além de atrapalhado, o cara tinha
o costume de não ser pontual. Assim sendo, para evitar esperá-lo além do
previsto, eu costumava ir pegá-lo na casa dele. Parei o carro em frente ao
prédio e buzinei insistentemente, dando demonstração de pressa. Algum tempo depois,
o bonitão surgiu com a mãe a tiracolo, ajeitando o filhinho aqui e ali, me
fazendo lembrar uma gata que lambe os seus filhotes.
– Vamos,
Léo! – gritei para apressá-lo.
Quando o
meu companheiro de trabalho preparava-se para entrar no carro, surgiu ao seu
lado uma mocinha meio acanhada. Ela usava um vestido de tecido barato e muito
florido, o que me fez imediatamente concluir a sua origem.
Trocou
umas poucas palavras com Léo e entregou-lhe uma certa quantia em dinheiro, que
hoje deveria corresponder a dez reais.
– Quê que
ela queria, Léo? – indaguei curiosa.
– Pediu
que eu entregasse esse dinheiro à mãe dela... lá no interior para onde estamos
indo... Ela é de lá, daquelas bandas.
Mudamos de
assunto, conversamos, rimos, cantamos, até que, por fim, chegamos à
cidadezinha. Fizemos nossa reportagem e, quando achei que só nos restava pegar
a estrada de volta, Léo me lembrou de que precisava entregar o dinheiro que a
mocinha enviara para seus pais. Perguntou na feira por seu Zé Felinto, marido
de dona Nova e pai de Marlene, e ficou sabendo que eles moravam um pouco mais
afastado da cidade, num lugar chamado “Arisco do Sotero”.
– A fia
casada dele mora naquela casa róseo... – anunciou o vendedor, que
foi interrompido pela mulher do lado, para dizer que nem entregasse a encomenda
porque ela não falava com o pai.
Léo
perguntou se o lugar era distante e, como disseram que não, ele decidiu que iríamos
até lá. Queria ter certeza de que a encomenda chegaria com segurança ao seu
destino.
Eu estava
a ponto de lançar-lhe, em rosto, todo o meu desagrado. Achava que tinha motivos
de sobra para fazê-lo; afinal de contas, já havia aguardado, pacientemente,
dentro do carro, enquanto Léo desfilava seu charme pela feira, comprando as
novidades do lugar para levar para sua querida mamãezinha. Era pamonha, feijão
verde, beiju, grude e nem lembro mais o quê, embalados carinhosamente para
viagem.
Decidi não
reclamar a decisão do meu companheiro. Com minhas implicâncias, eu iria, tão somente,
impedir aquele filho exemplar de realizar mais uma de suas boas ações. Mas não
posso deixar de confessar que esse seu jeito bondoso e mimado de ser era motivo
para eu fazer chacotas com ele, principalmente nos
momentos em que estávamos reunidos com os outros colegas na redação do
jornal onde trabalhamos.
Depois de penarmos bastante
procurando a morada do tal Zé Felinto, nos aproximamos da casa de taipa
indicada por um homem que seguia com sua enxada sobre o ombro. Ao ouvir o ruído
do carro, todos da casa saíram à porta, como que aguardando nossa chegada. Os
filhos menores agarravam-se à saia da mãe, de modo que ficavam quase que
totalmente escondidos por trás dela.
Descemos do carro. Leonardo
apresentou-se dizendo que vinha da parte de Marlene, a moça que trabalhava num
dos apartamentos do condomínio onde morava. Ao pronunciar esse nome, a mulher
pareceu engasgar-se com as palavras que queria pronunciar. Com voz embolada e
emocionada, ela disse:
– Diga a ela que fique por
lá.
Eu, curiosa de
nascença e acostumada a fazer perguntas, graças à minha profissão, sentei-me
num tamborete vazio próximo à porta e quis saber o porquê desse recado. Aqui e
ali precisava pedir que a mulher repetisse o que dizia, porque falava rápido,
olhando para o chão da casa, que era da mesma areia que havia no pátio em derredor.
A
mulher, de rosto sofrido, cuja idade não sei nem precisar, sempre com os
pequenos escondendo-se atrás dela, disse-nos que não queria que a filha
voltasse, porque a coisa estava cada dia pior. Arranjar comida já estava
difícil até para os que ficaram. Se Marlene voltasse, seria uma boca a mais
para dar de comer. Os filhos homens, que ficavam rapazes, fugiam de casa por
causa da brutalidade do pai. Faziam falta no roçado para plantar e colher, mas
era melhor assim. Largavam-se no meio do mundo, para tentar a sorte noutro lugar.
Quando
ela disse que nem sempre tinham o que comer, eu perguntei o que fazia com
aquele monte de filhos pequenos. Nem lembro quantos, sei que eram muitos, creio
que um filho por ano era a sua média. E quando comentei sobre isso, ela sorriu,
e disse-me com voz cantada, penso que se orgulhando do fato:
–
Fora cinco qui morreru... e os mai véio qui foru imbora... tudo
era dizenovi.
Queria que
trouxéssemos uma garotinha de uns catorze ou quinze anos para que, como
Marlene, pudesse arranjar um emprego em casa de família. Mas a mocinha, embora
fosse uma das menos assustadas, recusou-se a nos acompanhar. Cada vez que a mãe
falava no assunto e insistia para que nos acompanhasse, ela, quando não ficava
calada, sacudia a cabeça em sinal de negação.
Eu
fiz muitas perguntas e dona Nova me respondeu, de bom grado, tudo o que quis
saber. As meninas mais velhas vez por outra nos encaravam admiradas de nossas
roupas e tênis; os meninos não tiravam os olhos do boné de Leonardo; mas, se
fôssemos nós que resolvêssemos fitá-los com insistência, eles baixavam a cabeça
e escondiam-se, uns atrás dos outros, encabulados.
Respondendo
à minha pergunta, dona Nova disse que, nos dias em que não têm nada para comer,
todos se sentam no chão da sala e ficam, assim, sentados sobre a areia o dia
inteiro, sem fazer nada.
–
Ficam conversando? – perguntei interrompendo sua fala, ao que ela me respondeu:
–
Nóis num tem o qui cunversá não, moça... nóis fica caladu
mermo, isquecenu a fome...
Olhei
para Léo neste momento e senti que ele reprimia o choro. Eu tentava fazer o
mesmo, quis até ficar calada para a voz não me trair; contudo, como era minha
vez de falar, ficar calada seria pior. Decidi, então, continuar a conversa,
mesmo com voz trôpega.
–
E as crianças?
–
Fica queta junto de nóis, tá tudo acostumado já, a fome aqui num
é nuvidade não...
– Sim!... Sua filha Marlene mandou
umas coisas para senhora... – disse Léo saindo apressado em direção ao carro.
A
meninada o seguiu curiosa, todavia mantendo sempre uma distância defensiva.
Pareciam uns bichinhos assustados, pés descalços, cabelos aloirados em
desalinho e marcas de feridas nas pernas.
O
meu companheiro retornou com a sacola cheia das novidades que comprara para sua
mãe e a entregou à mulher. Achei o seu gesto louvável. Em seguida, tirou do
bolso uma parte do seu salário e lhe entregou também, dizendo que Marlene tinha
enviado. Dona Nova recebeu de cabeça baixa e proferiu uma bênção para nós e
para sua filha.
Neste
instante, os filhos, sentindo o cheiro de comida, começaram a puxar a saia da
mãe, dizendo que estavam com fome. Eu aproveitei o alvoroço para,
discretamente, espalhar, com as pontas dos dedos, as lágrimas teimosas que
escapavam de meus olhos.
A
mãe, nenhuma resposta dava aos filhos que lhe puxavam a saia e repetiam que
estavam com fome. Ela fazia gestos de reprovação e voltava-se para nós,
esperando que fizéssemos mais alguma pergunta. Se não introduzíssemos a conversa,
ela nada dizia.
Sem
nem ao menos contar o dinheiro que Leonardo lhe entregara, mandou que a menina
mais velha o colocasse embaixo de um rádio grande e antigo que havia sobre uma
mesinha no canto da sala, único móvel que havia além dos poucos tamboretes.
Percebi que faltavam uns botões no rádio e, por curiosidade, perguntei se ele
conseguia pegar as estações de minha cidade. Queria tão somente confirmar as
minhas suspeitas: o velho rádio era somente uma peça de enfeite, um dos poucos
pertences daqueles filhos da pobreza.
Decidimos
partir. Leonardo assumiu o volante, e eu, ao seu lado, volvia-me de vez em
quando para olhar a trás, a fim de contemplar a mulher e os seus filhos em
frente à baixa casinha de taipa. Até onde pude vê-los, estavam lá parados, junto
à porta, olhando em nossa direção.
Os rostos deles ficaram gravados em
minha mente, ao longo dos anos: olhos que não choravam, lábios que não sorriam.
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Fonte 1: Margarete Solange.
Mais Belo que o Pôr-do-Sol e outros contos.
Santos Editora, 2000.
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Fonte 2: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas e outros contos.
Fundação Vingt-un Rosado, 2009.
Mais Belo que o Pôr-do-Sol e outros contos.
Santos Editora, 2000.
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Fonte 2: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas e outros contos.
Fundação Vingt-un Rosado, 2009.
Choro sempre que leio esse conto.buá...buá...
ResponderExcluirAo ler este conto parece que estamos vendo os fatos acontecerem. É de uma realidade incrível.
ResponderExcluirParabéns.
Essa história parece com coisas que vivi na minha vida. Creio que a escritora se inspirou na minha história para fazer esse conto.
ResponderExcluirAinda bem que tudo já passou,né Maria?
ResponderExcluirO conto é belíssimo.Amei!!!
É isso mesmo, esse conto parece tão real que mesmo pessoas que trabalham com texto literário e sabem que o autor muitas vezes usa o “eu” narrador mesmo quando narra fatos que jamais aconteceram com ele, comentam com a autora detalhes desse conto como se ela fosse a jornalista e a narrativa fosse autobiográfica. A verdade é que a autora não é formada em jornalismo, tampouco viajou para fazer essa reportagem, ela juntou tudo que viu e ouviu e escreveu esse conto que emociona bastante por retratar fatos que são reais pelos sertões de nosso Brasil. Todavia, em parte, o conto retrata momentos da vida de sua prima Maria que morou em sua casa dos 15 aos 25 anos e que na infância viveu num cenário parecido com esse descrito no conto “Filhos da Pobreza”.
ResponderExcluirEu fico abestalhada quando leio as coisas que Margarete escreve, que coisa linda! Eu tenho muita admiração pelo seu talento. Filha, tenho muito orgulho de ser sua mãe.
ResponderExcluirGente, "abestalhada" no linguajar nordestino de dona Severina quer dizer "encantada" "extasiada". Tendo feito essa traduçãozinha, só me resta dizer: obrigada, dona Severina, também tenho muito orgulho de ser sua filha!
ResponderExcluirTambém acho esse conto muito real. A autora transmite com veracidade o lugar, as pessoas, enfim, a descrição dos fatos. Muito bom!
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