Conto de Margarete Solange
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Sofia e eu
éramos muito amigas, mais que irmãs. Sabe... o tipo de amigas assim... que não
tem segredos uma para com a outra?... Pois éramos assim! Discutíamos de vez em
quando, mas logo fazíamos as pazes e acreditávamos que, a cada obstáculo
vencido, nossa amizade tornava- se mais forte, mais indestrutível.
Conhecemo-nos na
adolescência, imagina como? – Gostávamos do mesmo cara, um chato por sinal! Não
vou nem mencionar o nome dele aqui, para não lhe dar essa honra imerecida.
Disputávamos para ver qual de nós duas iria conseguir conquistá-lo; resultado:
ele desprezou a ambas e, por fim, decidimos nos unir contra ele, e acabamos nos
tornando amigas.
Eu aprendi
a lição: não podemos deixar a paixão cegar nosso entendimento. No entanto, não
acho que Sofia também a tenha aprendido, porque tornou a apaixonar-se sem reservas,
outra vez. A princípio, não interferia; porém como ela passou a pedir
constantemente a minha opinião, não lhe escondi a aversão que sentia pelo
rapaz. Chamava-se Fred, era sério, calado, reservado, solitário... Sei lá, um
chato mesmo! Sentia-me totalmente deslocada quando estava na companhia dos
dois.
Sofia era louca por ele, e
ele por ela, creio!... Mas ele fazia o tipo durão que não demonstrava os
verdadeiros sentimentos. Tinha dificuldades de aceitar o jeito de ser de minha
amiga. Ela era alegre, espontânea, gostava de festas, de algazarras, de fazer
amigos, e o namorado era o oposto de tudo isso; além do mais, parecia não querer
dividi-la com ninguém, nem mesmo comigo, imagina?!... Sua melhor amiga! A meu
ver, como cheguei primeiro, tinha já meus direitos adquiridos por tempo de
amizade.
Namoraram cerca de dois
anos... dois anos e alguns meses, não importa!... mas a incompatibilidade de
gênio fez com que Fred declarasse, assim sem mais nem porquê, que seria melhor
que não se encontrassem nunca mais, e até mentiu, tenho certeza, dizendo que
não a amava. Sofia escreveu-me uma carta contando-me o quanto ele tinha sido
duro e cruel. Nessa época, eu morava na capital “na casa do professor”, porque
estava cursando mestrado. Como não podíamos conversar pessoalmente, ela me
escrevia ou telefonava, e confesso que me sentia enfadada de seus queixumes.
Ela estava
sofrendo muito com a separação, mas não me sensibilizei com sua dor. Desejava,
ardentemente, que minha romântica amiga esquecesse logo esse insensível que se
atravessou em seu caminho. Parecia que nada mais fazia sentido para ela.
Aborrecia-me seu estado de depressão profunda. Eu com tanto para ler e estudar,
ainda tinha que ouvi-la, horas a fio, desabafando suas mágoas.
Quando
viajei de férias para minha cidade, grande foi a minha surpresa: Sofia estava
magra, abatida, infeliz. Perguntou-me se deveria procurar Fred. Eu muito autoritária,
passei-lhe um sermão sem tamanho, enfatizando principalmente que deveria ter
amor próprio, e que já havia se humilhado bastante. Acreditei tê-la convencido
de que ele não merecia o seu imenso amor. Minha amiga esforçou-se para cumprir
à risca os meus conselhos. Por seis meses, não o procurou, até que, por fim,
telefonou-me dizendo que não suportava mais a saudade, e que precisava vê-lo. –
Respeitava de tal modo os meus “sábios” conselhos que precisava do meu
consentimento para poder descumpri-los. Não tive paciência nessa noite, e até
fui bastante grosseira com ela. Ora, eu estava tão atordoada com os meus
próprios problemas, e ainda ter que ficar ouvindo as suas lamúrias. Lancei-lhe
em rosto uma porção de desaforos: disse-lhe que estava sendo egoísta, que eu
tinha mais o que fazer do que ficar ouvindo seus chiliques de menina mimada.
Queixava-se constantemente
de que não estava se sentindo muito bem, tinha insônia e falta de apetite.
Tempos depois, a reclamação mudou: sentia uma sonolência incontrolável. Dizia
que não tinha ânimo para nada. Essas eram apenas algumas entre outras tantas
queixas mais; ficava até difícil acreditar nos seus achaques!... Perguntei-lhe
por que não desabafava com sua família; ela, então, me explicou que não queria
preocupá-los; outras vezes, dizia que eles não eram capazes de compreendê-la.
Sua família já não simpatizava com Fred, e depois dessa mudança súbita no
comportamento de minha amiga, a antipatia que seus pais sentiam
por ele cresceu ainda mais, passaram a detestá-lo. Não admitiam nem sonhar que
os dois pudessem ainda fazer as pazes. Sofia era a alegria da casa, mas depois
do rompimento do namoro, que nem sequer tinha causa justa, a moça perdera a
alegria de viver, trancou-se na solidão de seu quarto e não queria falar com ninguém.
Toda a alegria dos seus vinte e dois anos se esvaiu como que por encanto.
Como antes
já dizia, na última vez que me telefonou fui muito antipática e como sendo mais
velha e mais experiente, achei que lhe fazia bem dizer palavras duras; quem
sabe assim a ajudaria a amadurecer, ela reagiria e se esforçaria para superar
aqueles dias maus. Errei, pensando que estava fazendo a coisa certa.
Depois de
algumas semanas, arrependi-me de minhas palavras ríspidas e decidi visitá-la, a
fim de me desculpar. Só então, soube que estava realmente doente, e que já
fazia vinte e cinco dias que estava no leito de um hospital. Seu quadro clínico
era gravíssimo: leucemia aguda. Por vários dias, desejei vê-la, entretanto as
visitas estavam restritas somente à família. Logo que ela ficou sabendo de
minha presença, insistiu que precisava me ver.
Na tarde
do dia seguinte, deixaram-me entrar. Choramos abraçadas. Não perdera a essência
de sua beleza, porém sua palidez me assombrou grandemente. Ainda assim, não
achei que estivesse moribunda.
– Você vai conseguir sair dessa, amiga... – dizia-lhe entre
lágrimas. Mal podia acreditar que aquela figura plácida e muda, de palidez
impressionante, era a moça exuberante e amiga que encantava todos que dela se
aproximassem. – Me perdoa por não ter te compreendido, pensei que era somente
dor de cotovelo e que logo você ficaria bem – eu enxugava as minhas lágrimas
com as costas da mão e tentava me controlar; enquanto isso, ela, inabalável,
fitava-me com olhos penetrantes. – Lembra do tempo em que nós duas éramos apaixonadas
pelo mesmo cara?... Você chorava por ele, mas eu não... – minha amiga esboçou
um sorriso fraco, de quem estava preste a dar o último suspiro. Prossegui,
tentando animá-la. – Eu tive que te ensinar a dar duro naquele chato, lembra?...
Continuei falando e
falando, algumas vezes chorava, outras sorria. Minha amiga passou a fitar-me
com olhar vago, sereno. Senti medo de que estivesse indo embora. Um desespero
como que trazido pelo vento invadiu-me. Eu quis que ela conversasse comigo como
em tempos passados, mas tudo que ela fazia era acenar, com dificuldade, movendo
a cabeça, sempre que eu insistia para que confirmasse ou negasse alguma coisa.
Entrei em pânico.
E stávamos somente nós duas no quarto, e achei que, se me
ausentasse para chamar alguém, quando retornasse ela teria partido, sem que pudesse
detê-la.
– Me
perdoa Sofia, fui tão injusta com você... fui má... – ela me olhava serena e
acenava a cabeça ora em sinal afirmativo, ora numa negação; então eu ficava sem
entender o que isso queria dizer. – Você me perdoa, amiga?... – Supliquei por
fim sem acrescentar mais nenhuma palavra depois de minha sentença, a fim de não
ter dúvidas quanto à sua reposta. Ela acenou dizendo que sim e sossegou
novamente. – Quero ouvir você dizendo que me perdoa, preciso ouvir isso de seus
lábios, entende?
Depois de
insistir algum tempo, percebi que ela já não podia falar; era difícil conter o
choro. Beijei-lhe a fronte, sentindo-me culpada de sua desventura. Talvez eu
tivesse lhe dado o conselho errado... Além do mais, abandonei-a nas ocasiões em
que necessitava tanto de compreensão. Não podia mais ajudá-la, não dependia
mais de mim. Tentava me controlar, mas não conseguia. Estava ali diante de
minha grande amiga, vendo-a indo embora, sem poder segurá-la em vida.
– Não vá
Sofia... – sussurrei unindo nossas cabeças. E como obstinadamente pedia que me
perdoasse, fez acenos de que queria caneta e papel, e escreveu, valendo-se de
seus últimos esforços, as seguintes palavras: ‘Eu perdoo você’.
A partir de então, não me
separei mais daquele pedaço de papel. Essas palavras me absolviam de minha
culpa ao mesmo tempo em que me traziam a certeza de que minha amiga não queria
que duvidasse de seu perdão e, também, estava consciente de que não teria mais
outra oportunidade para confirmá-lo. Estava certa em minhas deduções: tão logo
a deixei nesse dia, ficou inconsciente e, dois dias depois, partiu.
Lamentavelmente, não podia
modificar sua triste sina e não queria nem mesmo pensar que, com ajuda prévia,
poderia tê-la feito diferente. Cada vez que o sentimento de culpa vinha
torturar-me, abria o pedaço de papel e lia o que nele estava escrito. Aquele
papel dava uma sensação de... de... sei lá!... Creio que um escravo, ao receber
a sua carta de alforria, reagiria como eu, tendo necessidade de conferir a todo
instante a posse do seu precioso documento.
Procurei
de todas as maneiras localizar o seu grande amor. Seria o último favor que
prestaria à minha amiga, aliás, a única que realmente me aturava; é que sou
meio autoritária e temperamental.
Somente no
domingo, poucas horas antes do sepultamento, consegui o número do telefone de
Fred. Com voz emocionada, resumi tudo que havia acontecido no pouco tempo em
que os dois tinham rompido o namoro. Dei-lhe as devidas instruções, a fim de
que pudesse vê-la pela última vez. E naquele momento de sofrimento em que a
cabeça não raciocina direito, cheguei a pensar que ela também ficaria feliz por
tê-lo avisado a tempo de comparecer à sua despedida.
Durante a
cerimônia religiosa, enquanto os parentes e amigos estavam absorvidos,
contemplando o rosto belo e angelical de Sofia, pude percebê-lo a uma certa
distância, esforçando-se para enxergá-la. Não precisei conversar com ele para
saber o que estava sentindo, pude ler no seu semblante transtornado a dor, a culpa...
o desespero.
Fred a
amava, não restava mais nenhuma dúvida. Foi mais um que não soube compreendê-la,
que não acreditou na sua fragilidade. Ele não se aproximou muito; permaneceu escondido
entre as árvores do sossegado cemitério. Foi melhor assim. Poderia haver alguém
no meio dos que pranteavam que, dominado pelo desespero, alçasse a voz para
declará-lo culpado daquela fatalidade atroz.
– Pobre Fred... – eu lamentava, sentindo uma inquietação
cochichando ao meu ouvido, algo que não podia compreender no momento o que
seria. – Eu pelo menos tinha o meu perdão autografado, e ele, coitado, seria
para sempre atormentado pelo sentimento de culpa. Sei que ela não gostaria que
fosse assim. Tinha um coração benévolo, incapaz de guardar mágoas, de negar o
perdão a quem quer que fosse. – Pobre Fred... – eu repetia mentalmente enquanto
me afastava inconformada, seguindo o cortejo.
A
inquietação não me deixava. Era como se algo me impulsionasse a retornar. Pedi
que parasse o carro e desci, alegando que preferia voltar para casa caminhando;
assegurei que isso iria me ajudar a relaxar. Era essa minha intenção, mas
instintivamente atravessei a avenida e retornei ao cemitério, apressando os passos:
precisava voltar ao túmulo de minha amiga – para quê?... – eu ainda não sabia
dizer. Ao atravessar o portão enferrujado, reduzi as passadas e segui, sem
pressa, em direção ao meu destino. Fred estava lá junto ao túmulo de Sofia, as
costas de sua camisa completamente molhadas de suor. Ah, ela gostava tanto de
vê-lo usando aquela camisa azul! Sorri e chorei ao mesmo tempo, lembrando-me de
como as pequenas coisas traziam grande contentamento à minha amiga.
Ocultei-me
entre as árvores e fiquei a observar o comportamento do rapaz. Ele parecia um louco...
um ébrio, estava inconformado, desesperado, castigado! Vi quando caiu de joelhos,
soluçando. Não ouvia o que dizia, mas eu podia muito bem imaginar como se
sentia. Fiquei lá, no meu canto, não ousei interrompê-lo, e ele não se foi
enquanto o sol não se pôs.
Despediu-se
da amada, pondo uma rosa vermelha sobre o mármore branco do túmulo. Esse seu
gesto carinhoso me fez sentir por ele uma ternura infinda. Chorei, oculta pelo
tronco de uma árvore frondosa, pranteei por ele, lamentei o remorso que sentia.
Ele não soube amar, é bem verdade, mas sei que Sofia nenhuma mágoa levou
consigo, e que não suportaria vê-lo assim, atormentado.
Ao chegar
junto ao portão de ferro, na entrada do silencioso cemitério, deteve-se por
alguns instantes. Parecia ter intenção de retornar, mas não o fez. Olhou na
direção onde a amada jazia e pronunciou alguma coisa que não pude ouvir por
causa da distância que nos separava. Tão atordoado estava que, creio, nem
chegou a perceber minha presença.
Não teve a
mesma chance que eu de receber o perdão de Sofia. Agora ela estava morta, e a
culpa o torturava, e iria persegui-lo pelo resto de seus dias. Sei que ela não
gostaria que isso acontecesse, mas como nada mais poderia fazer, cabia a mim,
como sendo a sua melhor amiga, a missão de ajudá-lo – mas ajudá-lo como?...
Não tive coragem de me
aproximar dele. Não sabia o que dizer. Quando o vi saindo pelo portão,
lembrei-me do papel que trazia comigo. Retirei-o de minha bolsa e li silenciosamente.
Fechei os olhos. Parecia até ouvir a voz de Sofia ecoar em minha mente,
repetindo aquelas palavras de perdão:
‘Eu
perdoo você... Eu perdoo você... Eu perdoo você...’
De
repente, não sentia mais nenhuma culpa pela morte de minha amiga. Desentendemo-nos
várias outras vezes e sempre que fazíamos as pazes, ríamos de nossas desavenças
e concordávamos com a opinião de que uma amizade é mesmo cheia de idas e
voltas. Aquele papel não fazia mais nenhum sentido para mim; foi aí que entendi
o motivo de minha inquietação.
Corri até o portão. Vendo
que Fred seguia a passos lentos, alcancei-o e entreguei-lhe o papel, sem
dizer-lhe palavra. Não precisava dar-lhe nenhuma explicação: a caligrafia de
Sofia estava firme, inconfundível. Atravessei novamente a avenida, desta vez,
sentindo-me leve, redimida, segui o meu caminho aliviada, com a sensação de que
acabara de cumprir uma missão muito especial.
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Dedico este o conto aos alunos da 8ª série (1998)
da Escola José Martins de Vasconcelos, uma vez que
este foi escrito para satisfazer-lhes o desejo de dar a Fred
o perdão de Sofia. Para representar a turma,
cito: Ozemberg (Bebeto), Walterlúcio, Edier e Rafaela
da Escola José Martins de Vasconcelos, uma vez que
este foi escrito para satisfazer-lhes o desejo de dar a Fred
o perdão de Sofia. Para representar a turma,
cito: Ozemberg (Bebeto), Walterlúcio, Edier e Rafaela
Fonte 1: Margarete Solange.
Mais Belo que o Pôr-do-Sol.
Santos Editora, 2000.
Fonte 2: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado, 2009.
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Mais Belo que o Pôr-do-Sol.
Santos Editora, 2000.
Fonte 2: Margarete Solange.
Ninguém é Feliz sem Problemas.
Fundação Vingt-un Rosado, 2009.
Nota
Quando
trabalhava como bibliotecária, a autora costumava visitar as salas de aula
levando textos literários a fim de que os alunos ouvissem e comentassem. Em
1998, ao ler o seu conto “Tarde Demais” para uma turma de 8ª série, a reação
dos alunos foi de desagrado: queriam que Sofia desse a Fred o seu perdão. Para
satisfazer o desejo dos adolescentes, a autora retornou na semana seguinte a
essa mesma turma com um outro conto que narra a mesma história mudando o título
e o foco narrativo. Tudo isso com a finalidade de dar a Fred o perdão de Sofia.
Na epoca, eu estudava nessa turma. Lembro-me muito bem. O conto "Tarde demais" é muito legal, comovente. Realmente Fred precisava do Perdão de Sofia. Ainda bem que a autora ouviu nosso pedido e escreveu um conto dando a Fred o perdão que ele precisava.
ResponderExcluirLindo! Quem leu esse conto, precisa ler o conto "Tarde demais", um melhor do que o outro.
Conto bem interessante. Gostei. Mas coitado de Fred, a autora foi muito malvada com ele. hehehe
ResponderExcluirBons tempos aqueles.Todo conto vc me dava para ler,ou aos alunos,e tínhamos que dar nossa opinião.Essa que os meninos deram achei o máximo,pois fiquei chateada com o final de "Tarde demais".Ficou lindo esse conto.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirÉ Maria, a autora foi malvada com Fred, mas Fred também foi malvado com Sofia... Se não existissem essas malvadezas todas, não teria a história! Viva as malvadezas literárias! kkkkkkk
ResponderExcluirConto muito interessante. Nos leva a meditar a respeito de darmos mais valor aquilo que temos enquanto está ao nosso alcance.
ResponderExcluirEsse conto é muito lindo, o nos leva a refletir sobre a importancia de mostrar-mos a quem amomos o valor que eles tem pra nossa vida....
ResponderExcluirja havia lido a uns 5 anos e estav procurando novamente para rele-lo...
parabens
que DEUS continue vus abençoando com inspiraçao pra escrever as palavras que tocam a todos que leem...
Continuarei orando por voces.