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domingo, 28 de março de 2010

A LENDA DO COTOVELO

Conto de Margarete Solange
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Final do século XXI. Era da invenção do CD voador como meio de transporte mais rápido e mais seguro. E também do atomolar, um telefone celular tão pequeno que pode ser transportado dentro da orelha, como se fosse um aparelho de surdez.
      Na varanda de um apartamento, de onde é possível apreciar belas praias que tornam magnífica a vista de uma agradável cidade brasileira, um garotinho requer a atenção da avó que, até então, lia uma revista. Apesar de ser uma senhora moderna, dona Carminha ainda preferia a leitura de livros e revistas impressos no papel, mas nem por isso desprezava a leitura eletrônica. Para ela, o avanço tecnológico era muito bem-vindo, mas em alguns pontos, tendia a preferir o tradicional.
– Vovó... – iniciou a criança, que não deveria ter mais que uns sete anos. – vovó outra, a mãe da senhora, me falou que não devemos botar os cotovelos na mesa durante as refeições. Eu perguntei por quê. Aí, ela disse que era porque sim...
– Ah, filho, minha mãe é muito apegada aos costumes antigos, e essa coisa de não colocar os cotovelos sobre a mesa é uma longa história...
– Mas eu quero saber... E ninguém até aqui quer me dizer. Já reparei que só as pessoas de cabelo branco não botam os cotovelos na mesa, mas os jovens nem ligam pra isso.
A jovem avó suspirou, deixou de lado a revista que lia e pôs-se a contar a história que sabia. A narrativa foi mais ou menos assim: 
Há muito tempo atrás, muito tempo mesmo, quando ainda existiam reis, rainhas, príncipes e princesas, uma rainha, sem paciência com seus filhos, consultava uma velha má para saber como deveria corrigir seus pequenos, a fim de que fossem SEMPRE silenciosos e JAMAIS lhe desobedecessem. 
A rainha era muito irritadiça, e castigava os filhos por qualquer motivo, principalmente o primogênito, que era um menino, e que, segundo ela, dava mais trabalho do que suas seis filhas juntas. Ela lhe dava todo tipo de castigo, a fim de mantê-lo comportado. Até que um dia, como a velha malvada não tivesse mais nenhuma novidade em conselhos para lhe dar, disse-lhe que o proibisse de apoiar os cotovelos sobre a mesa durante as refeições. Assim, sempre que o enérgico menino desobedecia, os seus cotovelos eram castigados até ficarem terrivelmente doloridos. 
A partir de então, o principezinho, que era alegre e brincalhão, tornou-se sorumbático e rancoroso. Quando cresceu e tornou-se rei, estabeleceu um decreto que mandava matar qualquer pessoa que, durante os seus banquetes, apoiasse os cotovelos sobre a mesa. Assim, todas as pessoas do seu reino, temendo ser mortas, tratavam de ser cuidadosas. Alguns, enquanto comiam, utilizavam cautelosamente uma das mãos e mantinham a outra sobre o colo, de forma que o braço ocioso ficasse tão forçadamente estático junto ao corpo, que até parecia ter sido morto por uma trombose. Observar a postura de tais pessoas suscitava o riso; mas rir, durante as refeições à mesa desse monarca, era igualmente proibido. 
Com o tempo, esse costume foi passando de geração a geração, até que se espalhou por muitos outros lugares, tornando-se parte das etiquetas de boa educação. Cotovelos apoiados sobre a mesa? Nem pensar!...
Isso durou muito tempo, até que, no final do século XX, a princesa de Lamonoc – quem sabe até descendente do rei frustrado que inventara essa besteira – resolveu não se importar com essas convenções. Ora, o cotovelo era dela, e ela decidiu colocá-lo onde bem quisesse. Isso foi da conta de todo mundo, um escândalo! Depois, foi a vez do príncipe de Lagrantierra escandalizar gregos e troianos, confessando aos repórteres que também era adepto de tal costume.
Logo que as pessoas se acostumaram com as infrações da realeza, pararam para pensar, e se perguntavam: “Afinal, que mal há em colocar os cotovelos sobre a mesa? Quem inventou essa lei?” Uns aos outros se perguntavam, mas ninguém sabia quando nem onde essa besteira começou. 
Nessa época, surgiram polêmicas entre as pessoas. Debates e mais debates em programas de televisão. Inúmeros livros e pesquisas foram publicados sobre o assunto. Por fim, os pesquisadores chegaram à seguinte conclusão: já que inventaram liberdade de expressão do pensamento e de tantas outras coisas mais, por que não declarar a liberdade de usar os cotovelos como bem entender?
Finalmente, foi aprovada a lei que assegurava, aos cotovelos, o direito de se apoiarem onde bem quisessem. Contudo, a geração mais antiga não conseguiu ainda se acostumar com os tempos modernos; passa mal ao vê alguém usando os seus pares de cotovelos para apoiarem as mãos que sustentam as caras sorridentes dos que, muito à vontade, conversam com amigos durante as refeições.
Alguns restaurantes ainda mantêm lugares reservados para aqueles que não se misturam com os adeptos da liberdade de cotovelo. Mas, segundo as estatísticas dos estudiosos do assunto, quando morrer a última pessoa dessa geração presente, esse tema fará parte do passado, e os cotovelos serão livres para sempre dessa maldição.
Tão logo encerrou a narrativa sobre “a lenda do cotovelo”, a jovem avó encaminhou-se ao terraço panorâmico no ducentésimo andar do prédio; e, enquanto o netinho brincava com seu brinquedo eletrônico hiper-ultra-moderno, pôs-se a matutar consigo mesma, observando as luzes dos CDs voadores ao longe.
Interessante como certos costumes são acatados pelas pessoas. Algumas nem entendem o sentido da coisa, mas aderem, simplesmente porque outros já aderiram, ou porque está no auge da moda, e todos fazem ou deixam de fazer. A maioria das pessoas não pensa por si mesma, e deixa-se aprisionar por certas convenções, sem qualquer questionamento. São poucos, na verdade, os que buscam o porquê das coisas.
– “CDs” voadores! – exclamou a mulher, falando consigo mesma. – Coisas de gente prática e moderna. E pensar que ainda existem pessoas que preferem se arriscar andando de automóveis! 



Fonte: Margarete Solange,
Mais Belo que o Pôr-do-Sol e outros contos.
Santos Editora: 2000.







5 comentários:

  1. Quando eu penso que já li de tudo da autora,lá mse vem uma surpresa.Nunca pude imaginar o motivo de não poder se colocar o cotovelo na mesa,vou levar essa lenda adiante,acho que é pura verdade.Sempre achei uma besteira essa história.
    Parabéns por saber me responder essa curiosidade.

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  2. Pois é Nadjane, esse negócio de não poder colocar os cotovelos na mesa é uma besteira. Valeu autora,gostei.

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  3. Também acho, Maria, uma grande besteirada. Uma coisa muito mal inventada certas etiquetas. Adorei o conto zombar de uma questão como essa.

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  4. Todas as pessoas que gostam de etiqueta besta deveriam ler esse conto. Ora, pra que inventar essa besteira de não poder colocar os cotovelos sobre a mesa? Ainda bem que esse conto liberta todos os cotovelos dessa condenação.

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  5. Conto bem bolado. E quem sabe se de verdade essa etiqueta até não surgiu de algo parecido com a narrativa desse conto. Na vida e na arte tudo pode acontecer.

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